A extinção dos dinossauros

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Foi o cometa Halley que agarrou em Mark Twain e o tirou de um qualquer buraco negro para o fazer nascer na terra. O Halley o trouxe, o Halley o levou: 75 anos depois, estava Halley o mais próximo que lhe é dado estar do Sol, pimbas, puxou Twain pelo fundilho das calças em direcção ao infinito, como se fosse Huckleberry a arrebatar o escravo Jim, no célebre romance de amor em fuga dos dois. Ou talvez Halley tivesse puxado Twain pelas ceroulas, que em geral é de roupa interior e íntima que se parte para a eternidade.

Cometas, meteoritos e dinossauros transpiram cumplicidade. Eram 7:45 da manhã, a caminho do jardim de infância, e o meu neto perguntou. «Avô, os dinossauros existem?» Ele decorou todos os nomes de dinossauros e répteis. Tem também dois livros de inventários de animais e árvores, que folheia a uma velocidade não-intermitente impossível de compaginar com a energia eólica: lê, digamos assim, mais depressa do que o vento.

Foi a mãe, a Rita, no banco de trás, que respondeu ao Carlos: «Não, os dinossauros já não existem…». Veio o refrão dos quase 4 anos: «Porquê?» A mãe, com eufemística doçura, disse-lhe que desapareceram. Com aqueles obstinados restos de positivismo lógico, que nem mesmo a leitura da Estrutura das Revoluções Científicas do humaníssimo Thomas S. Kuhn, conseguiu liquidar em mim, eu acrescentei: «Meu amor, extinguiram-se!»

Houve um silêncio humilde no banco traseiro, logo seguido de uma arrebatada e revoltada pergunta: «Avô, o que é extinguir-se?» Em uníssono, duas respostas céleres encheram o habitáculo do velhinho Audi. Da boca da mãe saiu um perfumado e tautológico «é acabar», da do abrupto avô, um lancinante «morreram».

Ora, foi a esse arqueado «morreram» que o Carlos reagiu como uma seta: «Avô, morreram para onde?» Eram umas certíssimas e fulminantes sete horas e cinquenta minutos da manhã da passada terça-feira e a morte ganhava, num carro a caminho do jardim de infância, a fulgência de um tigre. A morte, a estática morte, ganhava movimento: dos alvos abismos a tenebrosa questão, que bate as asas e voa, já não é «o que morre», «porque morre», «como ou quando morre», mas sim a inflexão epistemológica do meu neto de quase 4 anos: «para onde é que os dinossauros morreram?»

Tentei não enfiar o rabo entre as pernas e saiu-me a deslavada resposta de violino sem cordas: «Para o céu.» Acenderam-se todas as luzes infantis no banco de trás e o Carlos, porventura com uma ponta de ironia, corrigiu-me: «Avô, os dinossauros não voam. Morreram para o chão.»

Cantou e cravou-se em mim toda a semana a pergunta do meu neto: «Morremos para onde?» Para onde morreu John Kennedy, Estaline ou Salazar? Para onde morreu Camões ou Sophia ou Jorge de Sena?

Visitei um dia o camarim, na verdade uma casinha, que a Fox fez no estúdio para Marilyn Monroe. Passei também pelo cemitério de Westwood onde foi enterrada. Mas para onde morreu Marilyn? Para o camarim ou para o cemitério? Onde está mais deitado – e ainda cintila – o espelho do seu corpo, a tumultuosa música dos seus cabelos? No camarim, ou na boca de ar da estação de metro de Nova Iorque, onde Billy Wilder lhe enfunou o vestido e as suas branquíssimas pernas encheram de loucura infrene a noite?

Para onde, agora que já vejo nas constelações a meta da maratona, morrerei eu? Para o bairro da cidade afro-colonial de Luanda, para as suas ruas e largos, para as suas ruínas e jardins, bailes, poemas, beijos, caramanchões e acácias? Ou para esta Lisboa de pátios quase secretos, de colinas e vento, a cuja luz bem-aventurada amei e me fiz homem? Para onde?

A Guerra e Paz, muito comovida, transcreve o poema que José Luís Mendonça, autor desta casa, escreveu em resposta a esta crónica, publicada no Jornal de Negócios:

EVOLUÇÃO

(resposta ao neto do Manuel Fonseca,

sobre saber para onde morrem os dinossauros)

 

Homem, dinossauro sobrevivente

nos liames infalíveis da História

em ti eu estou consumado

e cada olhar que realizo

é uma voraz construção.

 

Porém virá o tempo

de sermos outra vez os monstros

desta era fantástica

e sobre a escrita calcinada das estradas

alguém lerá

o disforme pescoço da civilização contemporânea.

 

20/3/79 [José Luís Mendonça, Chuva Novembrina]

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