Lembro-me que o li numa só noite, a noite de consoada. Eram noites adolescentes de café e trópicos, na cidade de São Paulo d’ Assumpção de Loanda. Já iam os anos 60 a meio, tão a meio como eu era meio hippie e saía à rua descalço, flowers in my hair, como se fosse a caminho de San Francisco. Era também como o livro se chamava, Milagre de São Francisco, de John Steinbeck, a cada página um boémio, litros de alegre bebida a ensopar as páginas. Nunca mais lerei com tanta inocência um livro como li esse Tortilla Flat, madrugada de Natal dentro, indiferente a mil mosquitos e ao húmido calor de Dezembro.
Sem nenhuma inocência li o Mein Kampf, de Adolf Hitler. E decidi publicá-lo, agora em edição brochada e já não em capa dura, fazendo-o preceder de um mini-ensaio, que eu mesmo escrevi, intitulado “Ascensão, poder e crime do nazismo”. Contra o esquecimento, num tempo em que o anti-semitismo se infiltra pelas ruas da Europa.
Não é também inocente o novo atlas histórico que vos trago em Julho: Atlas da Revolução Francesa, de Pierre-Yves Beaurepaire e Silvia Marzagalli: em 120 mapas e 176 páginas fala-nos dessa revolução que depressa perdeu a inocência, mudando a Europa e o mundo. Ou de como, do mesmo ovo, nascem ideais e ignomínias.
Em total inocência, quase cúmplice dos boémios de Steinbeck, Luís de Camões vai irromper este Verão pelas livrarias portuguesas com Quatro Cartas e um Bilhete a uma Dama. São as cartas que Camões escreveu a amigos, de Ceuta, da Índia, de Lisboa, acrescidas de um bilhetinho galante. Agora que tanto se lhe reconstrói a biografia, talvez não seja mau ouvir o que ele mesmo disse aos amigos.
De uma muito perversa inocência, chega-nos, com soberba tradução de Pedro Ventura, o mais célebre romance de Benito Pérez Galdós, Tristana. Sim, foi o romance que inspirou o filme de Buñuel e a que Catherine Deneuve deu corpo. Um conselho: livro na mão, leiam-no como se o estivessem a ouvir sussurrado pela divina Deneuve ao vosso ouvido.
De uma gloriosa e irónica inocência não-steinbeckiana é o romance do meu estimado autor Ernesto Rodrigues. Chamou-lhe ele O Bom Governo e vejam: é um governo de cem ministros que só trabalham à noite. Levantam-se à hora do telejornal para ouvirem o primeiro-ministro e há maravilhosos e inovadores ministérios, seja o dos Negócios Estranhos, seja o da Alta Cultura ou do Verniz. São 120 páginas deliciosas! Ingénuas?
E volto à minha inocência luandense. Do angolano João de Miranda publico Percurso de um Combatente, Feitos e Testemunhos Principais, uma quase autobiografia de um homem que, jovem, partiu para a luta armada, e adulto chegou a Embaixador do seu país na ONU. O livro vai estar também, pois é claro, à venda em Luanda.
Por falar em Verão, passou-me pela calva cabeça este sonho: que a excelentíssima Porto Editora, que admiro e a quem pertencem os direitos do Milagre de São Francisco (Livros do Brasil, comprem, comprem) devia um dia, magnânima, oferecer esses direitos a este inocentíssimo editor. Em memória desse Verão em que eu era meio hippie.
Na chancela Euforia, a Rita Fonseca foi ao universo digital resgatar uma nova autora, Liliana Rodrigues Brito. É a autora de Distorção. Não sei se a Liliana acredita em amores perfeitos, mas sei, e a Rita confirma, que é uma autora de mão e escrita feitas para o mistério, para esse distorcido e invisível rumor que cava, subterrâneo, a perdição dos amantes, talvez o fim da felicidade. Ah, é de ler, é!
Na chancela Crisântemo, a Rita Fonseca desafia os leitores com outra autora portuguesa, Marisol Anselmo. É médica pediatra e escreveu 100 Questões Fundamentais para Pais Conscientes, um título auto-explicativo para um livro tão sério como prático.
São os meus livros de Julho, pezinhos na água, talvez um dry-martini ao pôr do sol, a brisa marítima a prodigalizar carícias.
Manuel S. Fonseca, editor