A nossa pequena vida e o nosso pequeno mundo diluem-se como a miragem de uma cidade irreal. Agarremo-nos como náufragos aos cabelos húmidos da ficção. Neste Abril (o mais cruel dos meses, chamou-lhe alguém), escolho como meus livros esse terrível O Jogo Mais Perigoso, que a prosa certeira e implacável de Richard Connell armadilhou entre caçador e presa. É uma caçada, um jogo mortal: mas quem caça e quem é caçado? Junto-lhe o agitado Amok, do prodigioso vidente que foi Stefan Zweig, livro que nos agarra em peso pondo-nos na fímbria do sacrifício e à beira do alto penhasco do suicídio.
São duas perturbantes narrativas a que se junta o angolano José Luís Mendonça, vencedor com mérito do prémio Guerra Junqueiro. Escreveu agora Um Pássaro na Lua, seu segundo romance na Guerra e Paz, história quase sobrenatural de Kahitu, que nasceu com a síndrome de tetra-amélia, sem braços, nem pernas, mas chega a presidente de Angola. Se queremos falar de tolerância, comecemos por este tão mágico romance de Mendonça.
E agora paremos um minuto, para falar com a figura cordial de António Saraiva. Foi sindicalista e acabou patrão dos patrões. Era preciso fazer-lhe a biografia. Pedro T. Neves assina este António Saraiva, Um Certo Perfil, a que o Presidente Ramalho Eanes acrescenta o prefácio. A Jaba Recordati e Nelson Pires foram nossos bravos parceiros neste projecto.
Há vários anos que, com a Sociedade Portuguesa de Autores, editamos a colecção «o fio da memória». Hoje a colecção transfigurou-se. Entrou nela um pequeno livro, Uma Mesa de Pingue-Pongue e um Pequeno Lago, de que é protagonista Gonçalo M. Tavares. Em diálogo com José Jorge Letria, Gonçalo M. Tavares revela-se. Deixa-nos ver que já foi o rapaz que gostava de «treinar futebol à chuva», que gosta de ter frases «viradas do avesso», e que na infância lhe saiu a sorte de ter uma biblioteca «de filme, com dois pisos e uma escadinha». Sim, também se fala de Céline.
A solo, José Jorge Letria oferece aos leitores as Novas Greguerías. É um livro que nos faz rir, desnorteando-nos. Parecem ser só frases loucas, mas há nelas a paixão do paradoxo, do humor e da intempestiva metáfora, como se a realidade tropeçasse na linguagem: «Quando o mar se evaporar os peixes ganharão asas» ou «A girafa diz à pulga: “Conheço a selva muito por alto.”» são apenas dois exemplos da arte retórica deste livro de engenho e arte.
E se a conversa é de lilases e jacintos, venham comigo à China. Shen Fu foi um simples funcionário público no século XIX. Amou a sua mulher. E a beleza batia nos dois como o sol espanca as manhãs de Verão. Escreveu um livro soberbo de graça, com pingos de erotismo e digressões por leves montanhas e por rios distraídos. No Fio Inconstante dos Dias, Memórias de Uma Vida Flutuante é hoje um (belo, muito belo) clássico traduzido em todo o mundo. Faltava Portugal. História de amor, história de sofrimento: uma pérola comovente.
Continuo assim: Jesus, o Jesus histórico, nasceu fora do casamento. Era um bastardo, um «mamzer», por isso um excluído. O historiador e teólogo Daniel Marguerat escreveu Vida e Destino de Jesus de Nazaré. Num ensaio de alta exigência histórica e filosófica, Marguerat investiga, como num romance policial, a vida de Jesus e o essencial da mensagem que dela resulta: a pureza não é o que entra no ser humano, é o que sai dele! É da colecção Os Livros Não Se Rendem, de que a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações são os grandes mecenas.
Da novíssima colecção, A Minha Estante, chega a História de Jerusalém, assinada pelo arqueólogo francês Michaël Jasmin. É uma expedição a quatro mil anos de vida dessa cidade que já escutou mil sermões de fogo. Cidade Santa – ou será maldita? – magnética, centro dos três explosivos monoteísmos, este pequeno livro é a sua fascinante antecâmara.
E acabo com o livro de uma filósofa portuguesa, Mafalda Blanc, vencedora do Prémio Pen Club para o ensaio. Da Ontologia à Poética é o segundo livro que escreve para a Guerra e Paz. Centrado na sua paixão por Heidegger, Blanc alarga os seus temas ontológicos e metafísicos a Hegel e a Hölderlin, interrogando-se sobre o Ser, o Sentido, a Poética.
E termino. Sei que são estes os meus livros de Abril, mas sei lá bem, como perguntava Séneca «que lugar é este, que reino, que território do mundo? Onde estou? Sob o nascente do sol, ou sob o polo da Ursa glaciar?» Não sei, sei que leio.
Ora perdido que esteja, mas não me esqueci da Euforia, a chancela nova e fresca, que já namora os tops. O que a Rita Fonseca este mês descobriu foi que um casamento de conveniência tem tudo para dar certo. Se acham que não, experimentem ler Fica Comigo, o romance de Sara Cate (steamy, diz ela!). Mete bilionários (tri?) e exibicionismo. Digam lá se não é actual?
Manuel S. Fonseca, editor