«E uma última coisa…» quem está a falar, sussurro eu, é Bernardo Soares «punge-me, rasga-me, esfrangalha-me, toda a alma.» E é o que, nestas horas tristes e constrangedoras de Março de 2025, me apetece dizer. Sábio, e estou a parafrasear Ricardo Reis, é o que se contenta com o espectáculo do mundo, apenas desejando que a abominável onda o não molhe tão cedo.
E talvez as horas e os dias de Março não sejam tão penosos se pensarmos que dia 30 é o dia do lápis, e que, em Março, teremos mesmo um dia mundial da poesia, um dia de bibliomania, o dia do abraço ao bibliotecário, a semana das fábulas e do conto folclórico, o dia até do «lê para mim, se faz favor?». Leiam, por favor, os meus livros de Março.
Eu hoje leria a todos os portugueses um livro profundamente vigoroso e nostálgico, um «Stand By Me» da Revolução dos Cravos. Chama-se Os Putos do PREC, escreveu-o Pedro Prostes da Fonseca e está tudo explicado no subtítulo: Os Estudantes no Verão Quente de 1975. Com este livro voltamos todos ao Liceu, às RGAs, aos saneamentos de professores, às lutas políticas a soco nos pátios. Uma leitura cheia de testemunhos de quem viveu a adolescente orgia revolucionária de 75.
A seguir aconselharia a fazerem, pela mão do historiador José Matos, a visita guiada que se lê e desenha no Atlas Histórico do 25 de Abril. É, digo eu, o mais belo (por ser o mais «nosso») da colecção dos Atlas Históricos: texto sério e rigoroso, mapas, ilustrações, fotos, infografias, num festim de imagens e boa prosa para guardar como um sonho, que «o ópio – ui, outra vez o Bernardo Soares – tenho-o eu na alma.»
Bem sei que «a vida passa como uma vela longínqua», mas os leitores da Guerra e Paz nem por isso se esqueceram que prometemos comemorar, ao longo de 2025, o que as últimas horas e dias mais nos lembram, os 80 anos do fim da II Guerra Mundial. E aqui está um livro em que um exército de 20 historiadores, coordenados pelos especialistas Olivier Wierviorka e Jean Lopez, disseca Os Grandes Erros da II Guerra Mundial, desde o armistício francês de 1940 à invasão da China. Um livro de chaves, como é de chaves a obra de Christophe Dickès, O Vaticano, Verdades e Lendas: sem tabus, Dickès responde a questões como os silêncios de Pio XII perante o Holocausto, a misoginia da Igreja, a infalibilidade papal, as intrigas da Cúria, a riqueza e ostentação.
Eis o que nos livra da sordidez, a leitura, a literatura. E este A Literatura, o Bem que Paga, de Antoine Compagnon, eleva ao sublime a hagiografia da literatura e da leitura. É um dos nossos mais belos Os Livros Não se Rendem, essa colecção que a Fundação Manuel António da Mota e a Mota Gestão e Participações patrocinam há três anos. Compagnon prova que a literatura e os seus livros são mesmo úteis na vida: está errado e prejudica-se quem se acha demasiado ocupado para perder tempo a ler. Lê-se como quem ouve o «Concerto de Colónia» de Keith Jarreth. «Essa coisa é que é linda» como cantava o José Mário Branco.
A nossa nova colecção é A Minha Estante. Chegou o terceiro livro, A História das Ciências, de Yves Gingras. De Aristóteles às ciências contemporâneas, é quase um romance de acasos, de erros, de eurekas e de revoluções, de talento humano e de potentes tecnologias. A grande aventura humana de que beneficiam e gozam mesmo os que a recusam.
Nos meus livros de Março, há um livro que não é meu. You Hand Me – Mãos Que Transformam Vidas é um álbum fotográfico de Ricardo Pereira da Silva, com histórias inspiradoras resultantes do encontro entre uma criança e uma figura pública. Produzido pelo Instituto de Apoio à Criança. A mão da Guerra e Paz é só a da distribuição.
E, por fim, um livro que não é só de Março, por ser de todos os meses: Memorial de Aires, o último romance de Machado de Assis, o mais moderno dos romancistas. Antecede-o e cobre-o um «lençol de linho fino», Machado de Assis e o seu quinteto carioca, texto de Jorge de Sena em que os cinco romances, Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacob e Memorial de Aires são apresentados como um quinteto experimental, ao modo do Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell. Memorial, o romance de um homem humilde que conheceu, sem ilusões, o mundo por dentro e por fora.
A minha filha Rita ajudou muito nos meus livros de Março que ali estão em cima, mas ainda arranjou tempo para mergulhar nas brumas do «dark romance» com que pinta este mês a chancela Euforia. De Navessa Allen, Às Escuras é o romance de alguém com uma alma tão ou mais negra do que a noite. Tem um sangue impróprio e viciante. Cuidado com o coração.
Manuel S. Fonseca, editor