Podia ter escolhido o primeiro, mesmo o segundo parágrafo deste romance que se chama A Cidade dos Aflitos. Mas deixem que escolha o perturbante terceiro parágrafo:
«Usava um vestido de flores simétricas, uns três números acima. O sol atravessava-a, à lei da guilhotina. Se não fossem as flores do seu vestido, todas as ramificações do inimigo seriam perceptíveis, sem precisar de ter nas veias um líquido de contraste.»
Podia ser uma descricão gentil, mesmo sensual, apesar dos três números acima, mas esta sobreposição de uma cartografia de ramificações e inimigos e de uma entomologia de veias e líquido de contraste, logo nos sobressalta e inquieta. Depressa descobrimos que cada personagem é um soldado e de que esta cidade, esta aflitiva cidade, é um teatro de guerra.
O romance chama-se A Cidade dos Aflitos e escreveu-o Luís Pedro Cabral. Foi, e continuará provavelmente a ser ainda, jornalista. Mas este é um romance de escritor. O seu tema – não o queremos esconder, nem o autor o esconde – é o da luta contra o cancro. Um tema jornalístico, dir-se-á, mas quando, como diz Gonçalo M. Tavares numa nota de leitura a abrir o livro, se transformam doentes em pessoas, passou-se já para o domínio da escrita. Estas são personagens reais, de carne e osso, saídas de um sítio em que ninguém quer entrar, mas onde, apesar de tudo, a esperança ainda existe: um carteirista que já só pensa em reformar-se, um luthier cujos violinos encantam plateias, um forcado a enfrentar agora a besta mais vil, uma menina forçada a crescer mais depressa nessa cidade de aflitos onde nunca há milagres, uma mulher indomável e um médico perdido.
É ainda Gonçalo M. Tavares que nos diz: «Luís Pedro Cabral sentou-se nesse espaço de cura e por vezes de desespero, que é o IPO, e em vez de perguntar, esperou. E ouviu.»
Ao lado desta observação, outra nota de leitura, do cientista Manuel Sobrinho Simões, saúda este romance sobre esse hospital que não é um hospital como os outros, por ser o «lugar onde todas as pessoas vão curar as células más que têm no corpo.»
E volto a ler Luís Pedro Cabral: « A cidade é um organismo forte e indefeso. Travam-se dentro dela as mais duras batalhas. Todos os dias se ganham vidas. Todos os dias vidas se perdem. Não há outra realidade. Aqui, os pensamentos são o património imaterial da humanidade, rematerializando-se a cada instante […] É como se a cidade fosse um corpo e as pessoas fossem células e a própria natureza fosse um intruso. É tão dura e tão bela como a mais pura verdade que ali vive sepultada.»
A Cidade dos Aflitos, romance de uma guerra que diariamente nos cerca, é belíssimo, terno, inteligente e afectivo. Imperdível, diz Sobrinho Simões. E ele sabe do que fala.