A deliciosa tradição portuguesa de dar livros pelo Natal
Marco Neves
Uma ideia vinda do Norte
Na Islândia, é comum oferecer livros pelo Natal — a toda a gente! Novos e graúdos levam com livros no sapatinho e há quem diga que é possível a uma família islandesa passar a Consoada a ler. A comida que espere…
Há até uma palavra islandesa para este fenómeno: «Jólabókaflóð» — a inundação («flóð») de livros («bók») do Natal («Jól»). Só a palavra já é uma delícia, com aquele «ð» a fazer lembrar velhas sagas islandesas. (Olha, uma ideia para um livro neste Natal: uma saga islandesa…)
O leitor que me perdoe o capricho. Vou imaginar o Natal português de 2068. Por esses dias já ninguém se lembra que a ideia veio daquela ilha lá no Norte. O mundo, agora, já sabe: em Portugal, o Natal significa uma rajada de livros. Os portugueses nem eram os maiores leitores do mundo, mas — por alguma razão que ninguém sabe explicar — ganharam a estranha inclinação por comprar livros e livros e mais livros pelo Natal num certo ano da segunda década do século.
Dizem alguns que tudo começou numa crónica no Sapo 24, publicada no início de Dezembro de 2018 — quem a leu sentiu de repente uma estranha vontade de ir comprar livros para oferecer. A partir daí, a peculiar compulsão tornou-se numa bola de neve e, anos depois, já ninguém resistia. Natal que é Natal tem de ter livros!
É bom sonhar, não é?
Enfim, podemos não conseguir impor esta nova tradição, mas oferecer livros não deixa de ser uma boa ideia. Digo eu.
Mas por que razão é tão bom dar e receber um livro?
Sei-o bem: há muita gente que não gosta de ler. Pode parecer estranho oferecer-lhes um livro. E, no entanto, o desafio de encontrar um título que interesse mesmo a quem não gosta de ler tornará a prenda inesquecível.
Depois, mesmo se o feliz contemplado não chegar a terminar o volume, irá folheá-lo, lerá a nossa dedicatória, perceberá onde queremos chegar — talvez, um dia, distraído, se ponha a folhear de novo a nossa prenda (daqui a muitos anos) e já não consiga largar o livro que lhe oferecemos. E lembrar-se-á desse Natal antigo…
Não é fácil. É arriscado. Podemos oferecer um livro errado. Mas as prendas são sempre arriscadas. Ora, há livros de todo o tipo e feitio. Boa literatura, relatos de viagem, livros de História, divulgação interessantíssima, livros que ensinam, divertem, arreliam, dão-nos uma chapada na cara, deixam-nos comovidos ou com aquele apertão na garganta de quem está perante o Belo (assim mesmo, com letra grande) — ou então a desbravar algumas belas páginas sobre a miséria humana.
E tudo isto — o belo, a miséria, o riso, o choro… — num livro, que podemos ler num autocarro, enquanto esperamos alguém, enquanto vemos os números das senhas a passar lentamente numa repartição de finanças… É um prazer que dura horas, que não precisa de carga, que tem cheiro e peso e é bonito só por existir.
Os guardadores de memórias
Ah, e há a estranha capacidade destes objectos para recolher as nossas memórias. Nem é preciso escrevinhar ou sublinhar. Às vezes, abro um livro e lembro-me do momento em que o comprei, em que o folheei, em que comecei a ler — ou passei os olhos por aquele parágrafo em particular. As palavras dos livros que lemos misturam-se subtilmente com as histórias dos nossos dias.
Haverá melhor prenda? O prazer do livro, essa estranha mistura entre ritual e surpresa, não está assim tão longe do sabor de estar à mesa, no Natal, com a família, entre boa conversa e boa comida, com as crianças à nossa volta à espera das prendas. Ritual e surpresa: abrir um livro, passar os dedos pelas folhas, começar a ler — é uma sensação tantas vezes repetida e, de todas as vezes, sentimos água na boca pelo que vem aí.
Abrimos a capa, viramos a página, olhos a brilhar, e somos como crianças com um embrulho nas mãos: o que será que nos espera?