Por Onde Aquele Rio Corre
A História de sete irmãos no Congo que foi belga
por António Tavares
É a obra literária que Sílvio A. Abrantes acaba de dar à estampa. Sílvio Abrantes é mangualdense, melhor, abrunhosense, dali onde o rio Mondego deixa as margens de Azurara e Gouveia para seguir por entre as de Senhorim e Seia.
Engenheiro electrotécnico, pela Faculdade de Engenharia do Porto, aí se doutorou e aí foi professor e investigador. Foi também professor na Universidade de Kansas, nos Estados Unidos da América.
Músico e instrumentista – quem não se lembra do jovem baixista de uma formação surgida em Mangualde, nos finais dos anos 60 e princípios dos 70, do século XX? Melómano – quem não se recorda das suas prestações, a convite de Jaime Fernandes, no programa da Rádio Comercial “Country Music, Música da América”? Compositor – bem, nesta sua vertente estamos à espera que divulgue os seus trabalhos! Pessoa multifacetada e de uma cultura vastíssima.
Por onde aquele rio corre é uma edição da Guerra e Paz, Editores, lda, de Janeiro de 2021, e, ao longo de 335 páginas, Sílvio Abrantes elabora numa escrita apaixonante sobre a estada, nos longínquos anos 40, 50 e 60 do século passado, de sete irmãos, seu tios e sua mãe, em terras do antigo Congo Belga, hoje República Democrática do Congo e, pelo meio, República do Zaire.
A vida de António, Ilídio, Amílcar, Virgílio, Sílvio, José Carlos e Helena Abrantes – respectivos cônjuges (à excepção de um dos irmãos, quer permaneceu celibatário) e dos filhos, alguns destes nascidos naquela ex-colónia da Bélgica -, enquanto emigrados de Abrunhosa do Mato e colonos daquele país da África central, é-nos dada a conhecer. Alfaiates de mão cheia – vestiram personalidades históricas, entre os quais o General Charles de Gaulle -, social e culturalmente deixaram marca, indelével, nas pessoas com quem conviveram e nas cidades onde residiram.
Numa narrativa historiográfica, onde o rigor e a objectividade dos factos são pedra de toque, Sílvio Abrantes coloca, amiúde, cada um dos personagens em discurso directo, convocando o leitor à sensação de estar a presenciar os acontecimentos. A história é, assim, transportada do seu tempo próprio – o passado – para o presente.
É a entrada em cena de cada um dos personagens principais, ordenada por capítulos, que determina a sincronia temporal da narrativa. Depois é a diacronia que marca o ritmo, bem patente, aliás, na forma como cada irmão descreve as suas – e de outros – aventuras, na maneira como cada um invoca o outro, ou as situações vividas.
Longe de mero exercício de relato de memórias, a verdadeira dimensão do livro reside no facto de ser uma obra sobre Memória. É a Memória – na qual participa o esquecimento – que, resgatada por Sílvio Abrantes, se constitui como fonte historiográfica.
Com efeito, o autor, ao resgatar as memórias individuais de cada irmão e inserindo-as no processo histórico que o Congo Belga e todo o restante mundo vivia ao tempo dessas mesmas memórias, produz conhecimento histórico. Revela-nos o pulsar de uma sociedade e as formas de relacionamento entre colonos – europeus – e entre estes e os nativos. A escrita de Sílvio Abrantes descreve, de forma natural, uma realidade despida de preconceitos ou pré-juízos e deixa-nos vislumbrar uma certa e doce inocência e a humildade que permitiu àqueles irmãos a integração plena numa sociedade plurinacional e, social e culturalmente, cosmopolita. O sucesso financeiro e económico, resultando do empreendedorismo que caracterizava os irmãos, promoveu a ascenção social, evitando continuamente a eventualidade de deslumbramento, apesar das abismais diferenças entre aquele novo espaço geográfico e a aldeia que os viu nascer.
Naquela imensa e nova geografia, belgas, gregos, franceses, portugueses, entre outros, foram construindo um caldo cultural e de mentalidades que viria a criar – paulatina, mas definitivamente – novas mundividências. Nessa construção participaram, activamente, cada um dos sete irmãos Abrantes. Diga-se, de passagem, que os irmãos Abrantes, nas vindas à terra natal e no regresso definitivo, são já resultado daquelas formas de vida que experienciaram. É essa mundividência – diametralmente oposta ao Portugal do Estado Novo – que se vem a reflectir nas diversas actividades que desenvolveram, após o regresso a Portugal. Na verdade, acabam por ser uma elite no campo industrial (criação de empresas do ramo da panificação, de bebidas refrigerantes, de agropecuária, entre outros negócios), no associativismo cultural e desportivo – Ilídio está na génese do Centro Recreativo Abrunhosense, e, na senda da tradição familiar, Ilídio, Amílcar e Virgílio fundam o conjunto musical Irmãos Abrantes que servirá de berço a alguns dos actuais músicos da aldeia.
Voltando à obra, Sílvio Abrantes dá-nos conta das alterações, das mudanças e permanências, dos ritmos de evolução, quer dos personagens que trata, quer do processo histórico que ocorre no Congo e dos vários acontecimentos – os tumultos de 1959, a independência (1960), e Revolta dos Simbas (1964) e a zairização de Mobutu, em 1973.
São 35 anos de memórias de uma família inscritas na realidade histórica de um país e do mundo que, com recurso a séria e aturada investigação e análise documental, coloca o leitor, em atmosfera romântica, naquelas latitudes e num tempo já extinto. É uma viagem no tempo, num tempo lento, vagaroso, porém carregado de uma dinâmica de progresso económico-social estonteante.
Estamos perante uma obra de historiografia contemporânea. Vale muito a pena ler.
António Tavares