A tirania da opinião … é tão estúpida nas pequenas cidades de França como nos Estados Unidos da América

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Este é o primeiro capítulo de O Vermelho e o Negro. Traduziu-o Rui Santana Brito, na sua última tradução em vida para a Guerra e Paz editores. Começa aqui, nesta pormenorizada e saborosa descrição da pequena cidade de Verrières, o percurso de Julien Sorel, um dos mais ambíguos heróis (ou anti-herói?) da história da literatura.

 

CAPÍTULO I

UMA CIDADE PEQUENA

Put thousands together
Less bad,
But the cage less say

Hobbes

  

 

A pequena cidade de Verrières pode perfeitamente passar por uma das mais bonitas do Franco-Condado. As casas brancas, com os seus pontiagudos telhados vermelhos, estendem-se pela encosta de uma colina onde tufos de robustos castanheiros acentuam as mais pequenas sinuosidades. O rio Doubs corre a umas meras centenas de passos, ao pé das suas muralhas, outrora construídas pelos Espanhóis e hoje completamente em ruínas.

Verrières encontra-se protegida, a norte, por uma grande montanha que é uma das ramificações do Jura. Os cumes irregulares do Verra cobrem–se de neve logo nos primeiros frios de Outubro. Uma torrente que se precipita, impetuosa, vinda da montanha, atravessa Verrières antes de desaguar no Doubs, dando azo à laboração de um grande número de serrações de madeira e desenvolvendo uma indústria bastante simples que proporciona um certo bem-estar à maior parte da população na qual os camponeses prevalecem, de longe, sobre os burgueses. Não foram, no entanto, as serrações de madeira as responsáveis pelo enriquecimento desta pequena cidade. É à fábrica de tecidos pintados, ditos de Mulhouse, que se fica a dever o desafogo económico geral que, desde a queda de Napoleão, permitiu o restauro das fachadas de quase todas as casas de Verrières.

Mal entramos na cidade, ficamos imediatamente atordoados pelo fragor de uma máquina barulhenta que faz tremer o pavimento e tem um aspecto assustador. Vinte martelos pesados, que se abatem com um barulho que faz tremer o solo, elevam-se, impelidos por uma roda que a água da torrente põe em movimento. Cada um desses martelos fabrica, todos os dias, não sei quantos milhares de pregos. Frescas e bonitas são as jovens cuja função é submeter aos golpes dos enormes martelos os fragmentos de ferro que em breve se transformarão em pregos. Tal trabalho, aparentemente tão penoso, é um dos que mais espantam o viajante que pela primeira vez visita as montanhas que separam a França da Helvécia. Se, ao entrar em Verrières, o viajante perguntar a quem pertence aquela bela fábrica de pregos que ensurdece quem sobe a rua principal, respondem-lhe com um sotaque arrastado: Eh! Pertence ao Sr. Presidente da Câmara!

Por muito pouco tempo que o viajante se detenha na rua principal de Verrières, que inicia a sua subida nas margens do Doubs e a termina no cimo da colina, é quase certo que se cruzará com um homem grande, de ar atarefado e importante.

Por onde quer que passe, todos os chapéus se erguem com o respeito que o seu aspecto inspira: grisalhos são os cabelos, cinzento o fato com que se veste. É cavaleiro de várias ordens, tem testa alta, nariz aquilino e, de modo geral, uma figura dotada de certa harmonia: dá mesmo a impressão, à primeira vista, de associar à dignidade de presidente da câmara uma certa capacidade de sedução que ainda é possível possuir aos quarenta e oito, cinquenta anos. Mas o viajante proveniente de Paris não tarda a sentir-se chocado com o seu ar de auto-satisfação e auto-suficiência misturado a um não-sei-quê de limitado e pouco inventivo. Acabamos por perceber que o talento daquele homem se limita a embolsar a tempo e horas o dinheiro que lhe é devido e a pagar o mais tarde possível aquilo que deve.

É este o retrato do presidente da Câmara de Verrières, o Sr. de Rênal. Depois de atravessar a rua com um passo rígido, entra na câmara municipal e o viajante deixa de o ver. Mas, cem passos mais adiante, se esse viajante continuar o seu passeio, avista uma casa de muito bom aspecto e, através das grades de ferro que a delimitam, um magnífico jardim. Lá muito ao fundo, para lá do jardim, nada mais que a linha do horizonte, formada pelas colinas da Borgonha, e que parece feita de propósito para o prazer dos olhos. Aquela paisagem faz com que o viajante esqueça a atmosfera contaminada dos pequenos interesses monetários que começa a asfixiá-lo.

Dizem-lhe que aquela casa pertence ao Sr. de Rênal. É aos lucros obtidos com a sua grande fábrica de pregos que o presidente da Câmara de Verrières deve aquela bonita casa de pedra polida, presentemente em fase de acabamento. A família dele, diz-se, é espanhola, uma família antiga instalada no país muito antes da conquista empreendida por Luís XIV.

Depois de 1815, envergonha-se de ser industrial. O ano de 1815 fez dele presidente da Câmara de Verrières. Os muros em socalcos que sustêm as várias partes do seu magnífico jardim que, de socalco em socalco, desce até às margens do Doubs, são também a recompensa do talento do Sr. de Rênal no comércio do ferro.

Não espereis encontrar em França este tipo de jardins pitorescos que circundam as cidades fabris da Alemanha como Leipzig, Frankfurt, Nuremberga, etc. No Franco-Condado, quanto mais se constroem muros, mais se sobrecarregam as propriedades de pedras metodicamente ordenadas umas por cima das outras e mais direitos se adquirem sobre os vizinhos. Os jardins do Sr. de Rênal, repletos de muros, são igualmente alvo de admiração porque o seu proprietário comprou a peso de ouro certas pequenas parcelas do terreno que ocupam. Por exemplo, aquela serração de madeira cuja posição singular na margem do Doubs vos chamou a atenção à entrada de Verrières e onde sobressaía o nome sorel escrito em letras gigantescas numa placa que domina o telhado ocupava aqui há uns seis anos o lugar onde hoje se ergue o quarto socalco dos jardins do Sr. de Rênal.

Apesar do seu orgulho, o senhor presidente da câmara viu-se obrigado a entrar em grandes negociações com o velho Sorel, camponês duro e obstinado; deve ter-lhe pago uma boa quantia em luíses de ouro para conseguir convencê-lo a deslocar a sua fábrica para outro sítio. Quanto ao riacho público que fazia funcionar a serração, o Sr. de Rênal, servindo-se do crédito que Paris lhe proporcionava, conseguiu que o seu leito fosse desviado. Essa graça foi-lhe concedida após as eleições de 182*.

Deu a Sorel quatro arpentes em troca de um, quinhentos passos mais abaixo, na margem do Doubs. E, embora esta localização fosse bastante mais vantajosa para o seu comércio de madeira de pinho, o pai Sorel, como lhe chamam desde que enriqueceu, teve a astúcia de conseguir obter do vizinho a quantia de seis mil francos, jogando com a sua impaciência e a sua mania de proprietário.

É verdade que tal acordo foi criticado pelas almas pensantes do sítio. Certo domingo, há cerca de quatro anos, ao voltar da igreja com o seu faro oficial de presidente da câmara, o Sr. de Rênal avistou ao longe o velho Sorel rodeado pelos seus três filhos. Olhava para ele com um sorriso nos lábios. Aquele sorriso. Aquele sorriso caiu muito mal ao Sr. de Rênal, que desde esse dia pensa que podia ter feito a transacção em muito melhores condições.

Para se conseguir gozar da estima geral da população de Verrières, o essencial é, embora construindo muitos muros, não adoptar nenhum projecto trazido de Itália por esses maçons que, na Primavera, atravessam as gargantas do Jura para chegar a Paris. Uma inovação daquelas poderia valer ao imprudente construtor uma eterna reputação de cabeça-no-ar e fazer com que perdesse para sempre a consideração das pessoas bem-comportadas e moderadas que distribuem essa mesma consideração no Franco-Condado.

De facto, são essas mesmas pessoas bem-comportadas que lá exercem o mais fastidioso despotismo; é por causa de tão desagradável palavra que uma estada nas cidades pequenas é insuportável para quem viveu nessa grande república chamada Paris. A tirania da opinião – e que opinião! – é tão estúpida nas pequenas cidades de França como nos Estados Unidos da América.

 

Esta é uma tradução de Rui Santana Brito, tradutor brilhante, cinéfilo encantado, viajante impenitente, apaixonado por Roma e pelo Egipto. Continua vivo nas traduções de Sade, Oscar Wilde, Robert Graves e agora nesta de O VERMELHO E O NEGRO, de Stendahl. Não é por obrigação que devemos lê-lo, mas pelo prazer de ler os grandes livros que traduziu, pelo prazer de o ver verter com elegância essas obras para a língua portuguesa.

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