Agustina

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Conheci Agustina quando, com aquele descaramento tintado pela confiança que perpassa por certos heróis masculinos dos romances dela, arranjei maneira, primeiro de lhe telefonar, depois de a visitar na casa da Buenos Aires, em Lisboa, e por fim de lhe invadir a casa do Gólgota, no Porto. Nunca fiz isso com mais ninguém. E corrijo: a outra excepção é Mécia de Sena.

Conheci Agustina e, apesar de muito ter gostado de a conhecer, rói-me o desmedido e irrealizado desejo de não a ter conhecido menina. Vejam bem, a Agustina que eu conheci sempre teve o riso de menina, o gesto inocente de menina, como se a menina usurpasse nela a plenitude da mulher.

E se me é permitido dar asas megalómanas aos meus desejos, muito mais teria gostado de ter conhecido Agustina menina e na praia. Há um retrato dela, num dos livros que lhe publiquei, em que está de vestidinho de étamine cor de morango às pintinhas, as mãos postas no regaço. Está ao lado da mãe e na mãe já está a mulher que viria a ser a Agustina adulta. Até o vestido de seda crua. 

Eu diria que nos meus esparsos encontros com Agustina, nas apresentações de livros e até numa festa com Manuel de Oliveira (nos 90 anos dele?), a menina e a mulher se acotovelavam dentro de Agustina, entregando-se a essas conversas e reservados exercícios femininos que, por tão bem os conhecer, Agustina com facilidade atribuiu a Paula Rego no maravilhoso “As Meninas“,  o mais belo livro que me foi dado publicar, de texto tão irreverente, tão fino, tão caprichoso.

Sucessivamente, Agustina, ou a mulher com riso de menina e gestos de menina, escreveu para mim, depois de As Meninas,  também a sua autobiografia até ao 25 de Abril, a que chamou O Livro de Agustina dando-lhe por subtítulo A Lei do Grupo, o belíssimo texto com o provocantíssimo título Um Tijolo Quente na Cama”, para prefaciar o Cântico dos Cânticos, e resgatou a História de Portugal e os nosso heróis à chatice e ao convencionalismo, cantando-lhes a fatalidade com imaginação, e um humor que desce às cavernas de Ali Babá da irrisão, em Fama e Segredo da História de Portugal. 

E agora, sabendo o que foi esta última década de vida de Agustina, essa forma mais imponderável do que nefelibata de viver a vida, tenho dela esta visão: estou a vê-la e voltou a ser a menina de três anos que sai, sozinha, de um hotel de Espinho e caminha, levada pelo seu vestido de voile azul claro, rumo ao que ela chamava um fio de epilepsia. E rematava: «Talvez a liberdade seja um sintoma epiléptico.»

Morreu Agustina e ficou, com os seus vestidinhos leves, cabelos alourados, a menina que guardaremos para sempre: e a menina é um rio de palavras, sobressaltado rio de incertezas profundas. É mais do que literatura, é milagre infantil e criação do mundo.

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