Publicado em Fevereiro, Citações de Adolf Hitler reúne frases do Führer da mais variada ordem, sobre o nazismo, a democracia e o fascismo, a religião, mas também o amor e a cultura. O livro mostra não só o seu lado mais perverso, mas também as suas escolhas e preferências culturais, da literatura à musica.
Com o livro a originar reacções negativas, manifestadas sobretudo nas redes sociais, Manuel S. Fonseca, ex-programador de cinema da RTP2, ex-director de programas da SIC e actual proprietário da editora Guerra e Paz, que publica a obra, explica à VISÃO porque decidiu avançar com Citações de Adolf Hitler.
Depois de editar Mein Kampf, a editora Guerra e Paz edita agora um livro com citações de Adolf Hitler. Porquê a aposta nesta figura e como é que a escolha se encaixa no vosso catálogo?
Manuel S. Fonseca: Adolf Hitler é uma das figuras mais marcantes do século XX por razões terríveis. É natural que um editor queira publicar livros sobre figuras dessa natureza, de forma a poder aprofundar no plano histórico, ético e filosófico o seu impacto. Hitler é uma dessas figuras. Na Guerra e Paz, temos no catálogo uma trilogia – Mein Kampf, Manifesto Comunista e Pequeno Livro Vermelho – por serem três livros que estão, de forma directa ou indirecta, ligados a grandes tragédias do séc. XX. Na sequência desses livros, queremos aprofundar a figura de Hitler, agora através deste livro de citações. Estão publicados livros de citações de grandes figuras históricas, mas não de Hitler. A Guerra e Paz iniciou esta colecção de livros de citações e decidimos começar por duas figuras completamente opostas, das quais não há livros de citações: uma delas é Hitler e a outra é Jesus Cristo, que iremos publicar já a seguir. A colecção prosseguirá com um terceiro livro, as citações de Fernando Pessoa, de quem já há, até, vários livros de citações. Encontrámos uma fórmula diferente das que existem. Incluímos não só as citações, mas também elementos biográficos que ajudam a contextualizar as figuras. Esta é a colecção que decidimos fazer e Hitler é apenas um dos seus elementos.
A primeira frase do livro é “Adolf Hitler foi um monstro”. Contudo, os temas abordados e as curiosidades descritas revelam um lado diferente do próprio. Qual é o objectivo em mostrar este lado mais humano do ditador?
Não estou de acordo. Não mostram nenhuma faceta mais humana. Em primeiro lugar, é preciso perceber que o monstro Adolf Hitler, assim como o monstro Estaline, eram seres humanos, aliás compreenderemos mal as figuras se só pensarmos neles como monstros. Eles são monstros porque sendo humanos perderam a noção de compaixão e de empatia com os outros humanos. Há facetas das suas vidas que, de facto, fazem parte de qualquer vida humana: têm pai, têm mãe, nasceram. Nenhuma dúvida quanto a isso. No entanto, outros aspectos, aos quais voltamos no livro, sublinham bem a maldade e a barbárie de Hitler. Não me diga, por exemplo, que quando incluímos um capítulo dedicado às formas de intimidação que utilizava, brutais, isso não é um elemento extremamente revelador. Não vejo como esses capítulos que adicionámos tornem a figura apetecível, antes pelo contrário. Dou-lhe outro exemplo: saber que Adolf Hitler teve um relacionamento com pelo menos cinco mulheres, um relacionamento afectivo, e que quatro delas se tentaram suicidar, é ou não revelador? Esse é um elemento extremamente interessante de percepção de uma anomalia na forma de relacionamento afectivo de Adolf Hitler com as mulheres de quem se aproximou. Portanto, discordo radicalmente da ideia de que os aspectos que incluímos no livro tenham como objectivo favorecer a figura do ditador. Antes pelo contrário, são aspectos que de uma forma objectiva revelam ou indiciam as anomalias, os aspectos em que Hitler tinha comportamentos perversos ou de outra natureza.
A promoção do livro tem sido envolvida em alguma polémica, pela forma como apresenta o seu personagem central, levando inclusive alguns leitores a manifestar o seu desagrado nas redes sociais. Como é que explica e defende esta opção?
Acho que não são leitores. As redes sociais são um magma sem escrutínio. É mau se Imprensa for a reboque das redes sociais, que não tem critérios nem qualquer forma de escrutínio. Aquilo que eu quero dizer é que três ou quatro posts nas redes sociais não são para mim reveladores de qualquer tipo de desagrado. Essas pessoas não leram o livro, o que é pena, porque se lessem o livro veriam que é ridícula alguma da argumentação que usam. A personagem principal é apresentada num enquadramento objectivo e que revela aspectos altamente perturbadores. Um livro que tem fotografias do Holocausto e que revela a existência do Holocausto não é certamente um livro que é favorável a Adolf Hitler, é ridículo dizer-se isto. Espero que a Imprensa não corrobore a forma de análise das redes sociais, que comenta sem ter visto, reage apenas a coisas imediatas e sem nenhum critério de reflexão. Estou tranquilo, porque qualquer reflexão séria dirá que o livro não favorece a figura, nem omite factos. O Holocausto, os comportamentos de Hitler, a sua forma de classificar os seres humanos, por exemplo os judeus, estão todos bem explícitos no livro em texto e em imagem.
O livro apresenta um visual e grafismo bastante apelativo, porquê optar por este estilo e não por uma opção mais sóbria?
Há uma razão para fazermos os livros que fazemos: somos a Guerra e Paz Editores e os nossos livros são assim. Este livro não está fora do nosso padrão gráfico e visual. Editámos livros sobre Camões, Fernando Pessoa, Agustina Bessa-Luís, um livro com uma novela erótica de Jorge de Sena, um livro com a poesia erótica de Claude Le Petit, com desenhos e ilustrações do João Cutileiro, fizemos um conjunto vastíssimo de trabalhos e todos com um estilo visual que é o nosso. Este livro não é diferente dos outros livros que editámos e é este o nosso estilo.Em segundo lugar, uma grande parte do apelo do nazismo vem das suas coreografias, do seu visual e nós também o quisemos mostrar. Imagine que a Cinemateca mostrava, como já o fez tantas vezes no passado, um filme da Leni Riefenstahl, O Triunfo da Vontade, um filme pró-nazi, hitleriano, feito por uma realizadora fantástica, mas que tomou partido do Hitler. É um filme belíssimo apesar de ter uma filosofia má e negativa, o nazismo. No entanto, deve ser programado e exibido.
Não há nenhuma razão para não mostrarmos os símbolos e falarmos deles num livro. São os elementos próprios do nazismo, é uma forma de estudo e reconhecimento visual da sua forma de atrair as massas. Como sabe, Hitler abominava a arte contemporânea e a arte futurista, que considerava perversa e decadente, portanto proibia-a. Não devemos ser como ele, não devemos proibir. Como editor, sou contra proibições, quero mostrar todos os elementos que permitem às pessoas reflectir e pensar. Esse é o meu grande objectivo, levar as pessoas a reflectir e a pensar sobre a nossa história.
Um dos temas desenvolvidos é a obsessão do ditador pela cor vermelha, a mesma cor que optaram por utilizar para realçar algumas palavras e frases-chave. Isto foi premeditado?
Premeditadíssimo. Escrevi um livro, O Pequeno Livro dos Grandes Insultos, e utilizei vermelho e preto, tal e qual este livro. No livro sobre Jesus Cristo, que aí vem, as palavras são realçadas a azul. Quando fizermos o de Fernando Pessoa havemos de utilizar outra cor. Os nossos livros usam duas cores, é esse o nosso padrão gráfico e vai ser utilizado ao longo da colecção. Não tem nada a ver com o nazismo, tem a ver com escolhas gráficas. Numa citação sobre sindicalismo, o vermelho identifica a palavra no texto. Escolhemos citações grandes e longas para se perceber o pensamento por detrás daquela cabeça, mas queremos que as pessoas facilmente reconheçam a palavra-chave e o essencial da citação que lêem. É só uma questão prática, nada tem a ver com ideologias, e logo o nazismo que na Guerra e Paz rejeitamos em absoluto.
Vivemos numa época conturbada, sob a ameaça do crescimento dos regimes de extrema-direita. Este contexto está relacionado com o lançamento deste livro?
Não, vivemos ameaçados por regimes da extrema-direita e da extrema-esquerda e o nosso livro tenta avisar as pessoas para um perigo muito grande: o perigo de estarem a pensar e a dizer coisas que já foram ditas pelo próprio Hitler. Isso é que é um perigo, que pessoas que pensem que estão contra estejam a dizer e a proceder exactamente da mesma maneira que Hitler (ou outros ditadores ou outras formas totalitárias de acção política). Esse é que é o verdadeiro perigo. O nosso livro nada tem a ver com isso, é um livro que tem todos os elementos para que se possa pensar e reconhecer a monstruosidade que ali está.
Se consultarmos o post promocional deste livro no Facebook, muitos acusam a editora de estar a “normalizar o fascismo”. Como é que se defende destas acusações?
Em primeiro lugar, a acusação é ridícula porque o nosso livro torna claro desde o princípio que Hitler está inequivocamente do lado do mal. Em segundo lugar, o livro sublinha muito bem que a forma de crescimento e acção política de Hitler se fez com base na intimidação. Em terceiro lugar, sublinhamos que a acção política de Hitler conduziu ao Holocausto e à morte de milhões de seres humanos. Portanto, não vejo como é que um livro dessa natureza possa contribuir para a normalização seja do que for. Pelo contrário, temo que silenciar este livro comece a ser qualquer coisa da ordem da repressão.
Quero ainda dizer uma coisa que me parece importante: nas redes sociais, pessoas que se reclamam de esquerda praticam, às vezes, formas de exclusão que são assustadoras pela forma como bloqueiam o pensamento e impedem que se dialogue. Deve discutir-se com argumentos, nem tudo tem que ser a preto e branco. Essa, sim, era a estratégia dos totalitarismos.
Karl Popper acreditava que “a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância”. Porque é que os leitores devem tolerar um dos homens mais intolerantes da história?