Fizemos, com este livro uma edição voluptuosa, se assim se pode dizer. Com pintura de Mariana Viana. Mas vamos poupar comentários e deixar os leitores com a pintura e com excertos do livro.
“Foi quando à volta dele surgiu repentinamente um precipitado redemoinho que o envolvia, com regougos ciciados. As donzelas, de olhos esbugalhados, não ousavam entender o que se passava, nem a inocência delas o entenderia. As deusas sucediam-se num turbilhão por sobre ele, um turbilhão em que os seios saltavam, e era uma noite ardente que humidamente o cobria e em que ele se enterrava.
Uma dolorida e prazeirosa cócega o percorreu num arranco. As donzelas recuaram aterradas para as árvores próximas, como se tivesse de repente chovido uma água em que as deusas se embebiam. E ele, estendendo os braços num abraço enclavinhado, abriu os olhos e imaginou que, satisfeita enfim a sede de tantos anos, o Demónio
o deixaria para sempre. Alongou-se numa volúpia que era desgosto de que as deusas tivessem desaparecido; mas era também certeza triunfante de que era um homem que as deusas poderiam ter.
Sentou-se e olhou as águas correndo mansas. E, pela primeira vez, não desejou banhar-se. Pelo contrário, sentia-se numa descansada exaustão, que só tendia a repetir-se. Sorriu. Pôs-se de pé. E os olhos desceram ao longo do seu corpo, numa admiração tranquila. Nunca sonhara assim com deusas; e agora percebia que nunca esperara tanto por um outro sonho. E as deusas eram como mulheres. Teve então uma inspiração súbita. Abaixou-se, e pôs o gorro na cabeça, ao mesmo tempo que cerrava os olhos, na formulação do pedido. Seria que o gorro ainda obedecia? Sentiu nos lábios um calor. Contra o corpo um corpo se colava. E mãos mui finas lhe afagavam o dorso. Abriu os olhos. O gorro obedecera. E, abraçando as três donzelas, cujos vestidos rasgava, arrastou-as para o chão. E elas eram exactamente como as deusas do seu sonho.”
“Só o rosto, de olhos fechados, com os negros cabelos espalhados nos brancos almofadões, sobressaía, como de uma cabeça degolada, emaciada e exangue, que tivesse sido esquecida ao cimo daquele leito imenso. O cavaleiro debruçou-se para a cabeça, e observou-lhe os longos cílios, os arcos das sobrancelhas, o nariz pequeno e agudo, a boca de lábios pálidos e grossos, o queixo muito redondo, as faces sem cor e sumidas nas olheiras fundas. E, com um gesto largo, seguido de outros, atirou para o chão com todas as coberturas. Nua sobre o lençol branco, Dona Urraca não se moveu nem abriu os olhos. A sua pele tinha uma cor marfinada, que se destacava na brancura e ao mesmo tempo parecia alastrar-se nela. O pescoço era longo, e magro como os ombros. Mas da cava peitoral das clavículas os seios avançavam fortes, ainda que descaídos, em curva e contracurva, que mamilos crespos, largos e escuros, coroavam. Depois, a cinta era estreita, e as ancas, ossudas e largas, espetavam levemente as pontas de seus ossos, de que a barriga fluía redondamente como que precipitando-se no umbigo que parecia aquele buraquinho a meio de uma água que se esgota. E, numa onda que se encurvava, o ventre descia para uma altura cuja outra encosta um negro matagal cobria, sumindo-se no fino vale das coxas unidas. Os braços vinham magros até ali, terminados por longos dedos de compridas unhas. As coxas, então, afunilavam-se para os joelhos aguçados, e as canelas eram magras, com a barriga pousada ao lado. Mas os tornozelos eram de todo frágeis, e só os pés se alteavam tensos, os dedos entreabertos e recurvos.”
“Ela sentou-se e não viu ninguém. O velho, fincando os pés, recomeçou a puxar. Ela sentiu uns braços que a abraçavam e nos lábios a pressão de outros lábios; e havia um corpo que ternamente se encostava ao seu.
Quando o carro acabou de passar, a roseira ressequida desprendeu-se, e foi rolando no vento.”
O Físico Prodigioso de Jorge de Sena é uma pequena obra-prima. Esta peça bibliófila quis, no papel e nas soluções gráficas, responder a esse desafio. É um livro invulgar e raro. Uma edição numerada e que não voltará a ser reeditada. Ofereça este luxo a si mesmo.