Os governos de Portugal lá saberão de si. E saberão, porventura, porque esqueceram ou temem vir recitar em público o «Alma minha gentil» ou esse outro verso «Que eu canto o peito ilustre Lusitano / A quem Neptuno e Marte obedeceram»!
E, no entanto, diz-nos Jorge de Sena, explicando-nos tudo com uma arrebatadora erudição e com uma devastadora sedução, Camões é um poeta do futuro. Não o poeta do passado, anacrónico, imperial, colonial (e despejem-se aqui os ismos que se queiram), mas um poeta que transcende hagiografias nacionais e que, n’Os Lusíadas e sobretudo n’Os Lusíadas, apela a toda a humanidade. Camões é um expoente de universalidade, diz, quase nos fazendo o desenho, Jorge de Sena.
E é por isso que a Guerra e Paz editores comemora os 500 anos do nascimento de Camões com cinco livros que terão como selo esta designação: Camões-Sena, 500 anos de Camões na Visão Herética de Jorge de Sena.
São livros de uma radical paixão e de uma empolgante argumentação e juntam, numa simbiose inesperada Camões e Sena. O primeiro, O Pensamento de Camões, é só de Sena. Em quatro breves ensaios – fulgurantes – mostra como da poesia de Camões, da épica e da lírica, se pode extrair um pensamento filosófico que faz de Camões um gigante no seu tempo, alguém que, amando a Pátria, o faz «sem ilusões e de olhos corajosamente abertos para os outros e para si».
O segundo livro, Os Lusíadas e a Visão Herética inclui, claro, a versão integral d’ Os Lusíadas, precedida por uma breve apresentação de Sena dos dez cantos, e seguida por um esplêndido ensaio do mesmo Sena que resgata Os Lusíadas de qualquer visão paroquial, patrioteira, religiosa ou pietista: ali se cruzam, mostra Sena, as tradições cristãs, judaicas, pagãs e platónicas, numa visão política e religiosa heréticas. Estes são Os Lusíadas, carregados de glória, mas também de penitência, que ninguém pode usar para essa excitação nacionalista a que Sena chamou os «tais negros desígnios».
Vai ser uma edição linda: capa dura, sem lombada, costura com linha preta à vista, as quatro faces do livro pintadas à mão. Capa dura também, vai ser Babel e Sião, com a capa e parte do miolo em papel preto impresso a prata. Lá dentro, pela primeira vez, um encontro sublime: a redondilha de Camões, Sobre os rios que vão, a sua «profissão de fé pessoalíssima», o seu testamento poético, junta-se ao conto de Sena, Super Flumina Babylonis, que ficciona justamente Camões a escrever aquele poema. Nesse mesmo livro, o leitor encontrará o Salmo 136 de David, que inspirou a redondilha camoniana, bem como um emotivo ensaio de Sena que nos convence desta verdade: os 365 versos de Sobre os rios que vão são «das mais extraordinárias criações poéticas não só da sua obra, como do seu tempo ou da poesia universal».
Além destes três livros Sena/Camões, a que a Fundação Calouste Gulbenkian deu o seu apoio, publicaremos as cartas de Camões, em Cartas e Poemas, e, de Jorge de Sena, o seu controverso e iconoclasta Reino da Estupidez II, livro em que brilha um capítulo, divertidíssimo, intitulado «Dois Estudos de Super-Camoniciologia Envolvendo uma Sensacional Entrevista com Camões em Pessoa».
Cinco livros, nos quais se pode encontrar o Camões que os portugueses têm de continuar a ler, o Camões de «uma magnificente majestade intelectual», que nos devia inspirar. Foi esse o Camões que, por 30 anos, Jorge de Sena amou. Possamos nós aprender no amor de Sena a amá-lo nestes 500 anos do seu nascimento que Portugal quase esqueceu.
Manuel S. Fonseca, editor