Vamos, daqui a pouco mais de duas horas, dar início, na livraria Bertrand Picoas-Plaza, à sessão de apresentação do livro Angola, Me Diz Ainda, da autoria do poeta José Luis Mendonça. Vamos certamente ter sala cheio, numa prova de que a poesia ainda consegue mobilizar-nos de corpo e espírito. E é um sinal também do interesse em Portugal pela cultura angolana.
Dir-se-ia que a Guerra e Paz editores só tem uma mínima relação com a edição de poesia. É altura, agora que publicamos este livro, cheio de dor e de esperança, de fazer um balanço da que fizemos até agora com a poesia.
E a surpresa é que a Guerra e Paz tem um acervo que começa na poesia fortemente erótica de Pietro Aretino, passando pelos poemas dos “escritos Pornográficos” de Boris Vian, a acabar no proibidíssimo “O Bordel das Musas”, de Claude Le Petit, que levou a que o seu autor fosse queimado vivo na fogueira. A esta dimensão clássica e contemporânea internacional, juntamos a poesia satírica de Jorge de Sena, e juntámos dois monstros da poesia de língua portuguesa, Luis de Camões, de que publicámos uma edição popular de “Os Lusíadas”, num excelente trabalho de Helder Guégués, e vários livros de antologias de poemas de Fernando Pessoa, esse génio que sozinho era uma língua, que sozinho era uma pátria, que sozinho era uma multidão de sexos e de pessoas. Mais recentemente, de Tiago Nené, publicámos “Este Obscuro Objecto do Desejo”, vencedor do Prémio literário Maria Amália Vaz de Carvalho. Numa colecção muito especial e pessoal, o editor quis também publicar duas vozes extraordinárias. Uma é a voz poética do romeno Dinu Flamand, que escreveu “Sombras e Falésias”, um livro sobre a morte da mãe, a que António Lobo Antunes, no prefácio, chamou “um requiem majestoso”. A outra é a voz de Eugénia de Vasconcellos, que nos ofereceu em livro “O Quotidiano a Secar em Verso”, de que o poeta e crítico José Mário Silva disse: “Eis um livro meteorito, deveras imprevisto no seu fulgor de objecto poético não identificado, uma coisa que brilha lá no alto, prestes a desfazer-se em chamas enquanto atravessa, exuberante, a tranquila atmosfera da literatura portuguesa.”
É a este acervo e a esta tradição, de livros cuja linguagem é fortemente erótica e muito intensa, que vem agora juntar-se a voz angolana de José Luis Mendonça.
Romancista, jornalista, ensaísta, vencedor em Angola do Prémio Nacional de Cultura e Artes na categoria de Literatura, José Luís Mendonça oferece-nos um livro que está perigosamente próximo do real. Melhor do que nós fala a poesia do autor:
A cor da Humanidade
Acontece que mesmo sem ser americano
também eu nasci na América. E me sentei até
na cadeira onde sentou
Abraham Lincoln. Me chamaram
primeiro presidente negro.
Nessa terra onde as flechas do grande chefe índio
Touro Sentado
já não caçam bisontes
fui rei da música pop. Não é que me chamaram
o negro mais branco da América?
Depois da dipanda visitei a casa
do meu pai lá nos Alhais.
Um miúdo que passava falou olha o preto.
Serei eu um pretérito imperfeito
que só fala pretoguês?
Aqui no ventre solar da mamãe África
me chamam mestiço, laton e outros
conglomerados étnicos. Até branco me chamam.
Uma vez uma garina me disse
tens a cor da sorte.
Em São Paulo me fecharam
de negão no gueto e me pintaram
outra vez de preto preterido.
Um dia no aeroporto
Charles de Gaulle passaram
a minha identidade a pente fino.
Pensaram que eu era tunisino.
Pois é! Se ninguém sabe ao certo
se sou preto, se sou negro
se sou branco, ou branco-negro
latão fundindo as cores de toda a Humanidade
se sou as duas, três ou quatro farinhas sem sal
desse pão preto que o diabo amassou
e deu a comer aos anjos
nesta era prodigiosa
em que os comboios têm asas
se ninguém sabe ao certo o que eu sou, então
o homem que te dedilha este poema
é Martin Luther King a te dizer
«TODOS OS HOMENS NASCEM IGUAIS»
e é Nelson Mandela que sabia
que «NINGUÉM NASCE ODIANDO OUTRA PESSOA
PELA COR DA SUA PELE».
Luanda, Outubro–Novembro de 2013