Estranha forma de livro de memórias

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Apresentação do livro de Manuel Videira (o Mwambaka)

Angola, Um Intelectual na Rebelião

Fidel Reis: historiador e docente universitário

Estranha forma de livro de memórias

 

A sensação que tive, após a leitura deste livro, foi ter tido o privilégio de alugar uma sala de cinema. Onde, apenas eu e só eu, pude desfrutar de um filme onde cabiam múltiplos géneros cinematográficos. Concordo com o autor que considera a obra como um conjunto de cadernos de memória ou testemunhos. Mas não abdicarei de reter este livro como um filme, embora constituído apenas por palavras, sem imagens. O conjunto de memórias e testemunhos que abarca um período da vida de Manuel Videira (1954-1978), apela para cheiro, cor, olhar e som. Caso catalogasse o livro é provável que o remetesse para o sector das fontes audiovisuais. Eis um exemplo:

“Lembro-me particularmente daquele momento em que pela primeira vez abandonei o solo pátrio, a bordo dum enorme navio, ou paquete, o Uíge, com os desanimados parentes dos colonos ao longo do cais de Luanda, numerosos e ruidosos, acenando com lenços brancos para os que partiam em gozo de férias para a metrópole, sobretudo a custa da famosa licença graciosa. E destacado da multidão branca, um único negro magro, quase seco, de fato engomado, chapeu hirto aguardando o momento de nos saudar com o seu chapeu. Essa chapelada era dirigida ao seu filho Gentil, amim e a mais um estudante africano.”

Boa tarde a todos e a todas é com honra, privilégio e gratidão pelo convite formulado pela «Mwambaka produções» (Lizete Antas e Manuel Videira) que estou a apresentar a obra da autoriade Manuel Videira (o Mwambaka) e prefaciada pelo historiador Jean Michel Mabeko Tali: “um intelectual na rebelião”.

De forma introdutória quero desde já salientar a importância da contextualização, no decurso danarrativa, que possibilita ao leitor inteirar-se do ambiente global que foi influenciando a prática rebelionária de Manuel Videira (guerra fria, não alinhamento, igualdade racial nos EUA, revolução cubana, negritude, independências dos países africanos etc). E, no caso de Portugal: o estado de repressão do regime salazarista, a campanha presidencial que opôs Humberto Delgado a Américo Tomás, o assalto ao Paquete Santa Maria; as acções do PCP etc. E, obviamente, em Angola, a violência colonial e racial, nas suas múltiplas formas, exercida sobre os autóctones mas também com as devidas respostas a essa violência por parte dos mesmos: constituição das primeiras organizações políticas nacionalistas, levantamento da Baixa de Cassange, assalto as prisões de Luanda de Fevereiro e a revolta do 15 de Março. Mas, Videira vai mais longe. No decurso do livro vislumbra-se que o autor passou por vários países, cidades, regiões e até pequenas localidades. Por todos os lugares por onde passou, não resistiu ao comentário, descritivo e reflexivo da paisagem física e sócio-humana; não descurando o contexto político vigente. Daí que a minha abordagem relativa ao livro terá em conta os lugares que, no meu entender, foram marcantes na trajectória do autor: O eixo Angola/Portugal; o Congo Leopoldville; Argélia; Angola (Frente Leste IV região político-militar); o Congo Brazzaville e novamente Angola.

O eixo Angola/ Portugal 1954-1961

Aqui predomina a vida liceal e universitária. Pela mão de Manuel Videira acompanhamos a descrição do espaço liceal em Angola. Lugar privilegiado onde o autor sentiu os constrangimentos provocados pelo arbitrário colonial, nomeadamente, o racismo; mas a escola foi também lugar priviliegiado de aquisição de competências e de resiliência ao arbitrário colonial e racial. Aliás, a já referida despedida de Gervásio Ferreira Viana com a frase: “e destacado da multidão branca, um único negro”, fornece um forte indício do peso da componente racial no espaço colonial em Angola. É tam-bém durante este período que Manuel Videira inicia o princípio de uma longa amizade com GentilViana, futuro compagnon de route politique.

A estadia em Portugal, pontualmente interrompida por um regresso a Angola, tem como panode fundo a vida universitária concluida com a licenciatira em medicina. Suponho que o período Angola/Portugal, passagem do estudante liceal para o universitário tenhasido decisivo para a trajectória de Manuel Videira pois: ”ao deparar-se com distintas práticas evivências, desterritorializou-se dos estratos instituídos prévios passando por processos de elabora-ção de novas experiências, reflexões, afetos e sentidos que contribuiriam para um processo detransformação que o levou a novos modos de subjetivação1;”e por conseguinte ao seu engajamentona luta de libertação nacional como médico e guerrilheiro. E cito: “Algo estava muito errado, omeu país vivia num pesadelo vulcânico, habil e astuciosamente camuflado pelas autoridades colo-niais, iludidas pela força de uma doutrina antinatural incapaz de resistir por longo tempo.” Esta-vam abertos os horizontes do despertar da consciência, que o levariam ao início das actividadesclandestinas e a sua fuga de Portugal para o engajamento na luta de libertação nacional no quadroda militância no MPLA.

Paris, e uma fugaz passagem por Frankfurt pontuam o fim do ciclo europeu de Manuel Videira. Do-ravante seria o tempo africano que iria prevalecer na sua trajectória. Gana foi o ponto de partida. País onde iria sentir os primeiros constrangimento materiais e simbóli-cos. Seguir-se-ia o Congo Leopoldville.

 

Congo Leopldville 1961-1964

A permanência, neste país, só seria interrompida com uma curta estadia em Margnia campo de treino militar situado em território argelino. Onde, teria o privilégio de se deparar, com duas figuras marcantes da sua vivência: Ben Bela, então presidente da Argélia e o revolucionário universal Ernesto Che Guevara.

Manuel Videira, não abdica do clínico olhar da paisagem física e humana do Congo Leopldville, sem descurar alguns elementos que remetem para a compreensão da colonização belga neste território.

Da sua permanência no território congolês, que parece confundir-se com a história do MPLA, podemos reter algumas observações com profunda riqueza descritiva e reflexiva acerca de um dos períodos mais fascinantes e controversos da história do MPLA, mas igualmente da trajectória do autor. Alguns dados apresentados poderão estimular uma revisão da produção historiográfica e, por conseguinte levantar novos questionamentos acerca de um período bastante conturbado da vida MPLA.

 

Assinalamos, desde já alguns tópicos:

– A constituição do CVAAR- Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos Refugiados como estratégia troiana do MPLA para se fixar no Congo Leopoldville.

– As relações conflituosas entre o MPLA e UPA/FNLA que contribuíram em muito para as dificuldades de implantação do MPLA no seio dos refugiados angolanos, e igualmente para a entrada de guerrilheiros no território angolano. Acresce ainda o papel pouco abonatório do então governo congolês relativamente ao MPLA.

– E, obviamente a questão racial, empolada pela UPA/FNLA e pontuada pela controversa remodelação do Comité Director do MPLA, em Maio de 1962. Aliás, a questão racial acompanhará o percurso do autor, como consta no livro, embora de forma variável no espaço e no tempo. Acresce ainda, na narrativa do autor, a variabilidade do uso da categoria intelectual em função das dinâmicas internas do MPLA.

 

Mas Videira participaria também como testemunha e actor na primeira grande crise do MPLA. As-sinalemos alguns acontecimentos que constam no livro:

– O confronto entre Viriato da Cruz e Agostinho Neto;

– O papel de Gentil Viana na procura de soluções para colmatar o insucesso militar do MPLA;

– A conferência nacional que iria consagrar de jure Agostinho Neto como presidente do MPLA;

– O exacerbar dos ânimos entre o grupo Viriato e o grupo Neto que se traduziria em violentos confrontos físicos em Leopoldville.

– A expulsão da direcção do MPLA, e a sua transferência para Brazzaville, por ordem do governo Congo/Leo.

 

Manuel Videira terá ainda uma curta passagem por Brazzaville para participar na conferência de quadros do MPLA realizada na referida cidade, em Janeiro de 1964. Relativamente ao relatório da Conferência, Manuel Videira apresenta um conjunto de reflexões em torno:

– Do reforço dos poderes de Agostinho Neto no seio da organização;

– Da desconfinça por parte da direcção daqueles que eram classificados de intelectuais;

– “Do funcionamento da organização”.

Em 1964, com o MPLA expulso de Leopolville, Videira , temendo a sua prisão e expulsão por parte do governo congolês, iria encetar uma fuga, juntamente com Carlos Pestana e respectivasfamílias, que o levaria a fixar-se na Argélia. No decurso da sua vivência na Argélia, Manuel Videira vive uma aparente normalidade. Todavia, o autor não deixa de partilhar algumas peripécias e episódios que considero hilariantes. Não vou contar, senão o filme perde a piada…perdão o livro. Apenas dizer que um cachimbo e algumas bengalas podem contribuir para uma cena cómica.

Mas, após uma estadia de cerca de 4 anos na Argélia e um encontro com Amilcar Cabral, Manuel Videira iria voltar a militância política organizacional no MPLA. Desta vez não apenas na qualidade médico mas também de guerrilheiro. Será na Frente Leste, mais propriamente na IV região político-militar. E, como afirma o autor: ”daqui para frente é um outro caderno de memórias que será paulatinamente elaborado”.

 

 

Frente Leste/ IV região politico-militar. 1969-1971

 

Sublinhe-se que a vivência de Manuel Videira, na Frente Leste, decorre num contexto em que aguerrilha do MPLA começou a sentir as primeiras dificuldades na sua progressão devido à forte reacção das forças armadas portuguesas que tinham intensificado as acções militares, dificultando a territorialização das regiões político-militares.

O capítulo relativo a vivência do autor na Frente Leste, em particular na IV região político-militar, considero central no livro. Aliás, a fotografia da capa não é inocente.

Aqui deparamo-nos, com memórias e observações do autor com pujantes momentos cinematográficos. Refiro-me por exemplo as descrições e reflexões em torno do julgamento que se realizou na IV região político-militar, do ataque a vila de Nova Chaves, dos ataques perpetrados pelo exército português; da aventura do Pedrito. Acontecimentos narrados pelo autor que remetem para o drama, a acção e o suspense. O género comédia participa da sua prosa através do diálogo com o guerrilheiro Não Sei ou dos azares do Steel. E, obviamente sem esquecer a descrição da fauna, da flora e da paisagem sócio-humana.

Um aspecto que me chamou atenção, na narrativa do autor/actor, relativamente a IV região político-militar é o encontro de múltiplas racionalidades, e que Manuel Videira teve participação activa. Multiplas racionalidades que confluíram no espaço social produzido pelo MPLA e que participaram na luta pela independência. Apenas alguns exemplos: o já referido julgamento, o casamento esforçado. E, o diálogo entre Manuel Videira e o curandeiro tradicional: “E foi assim que eu, médico de bases científicas, lógicas e tecnológicas, aprendi a primeira lição sobre a real importância da fisioterapia.”

Quanto à passagem do autor pela Frente Leste, apenas mais uma achega. Considero que este capítulo do livro é um tributo honesto aos homens, mulheres e crianças que participaram na luta armada de libertação de Angola a começar por Ermelinda Katoyo e a culminar com as populações, na sua maioria tchokwe da Lunda Sul. O que me leva a recordar, aos fomentadores de uma certa amnésia relativamente a luta anticolonial, uma citação de Mao-Tsé-Tung e que adapto ao contexto vivido pelo autor: “A luta armada de libertação nacional não foi um convite para um jantar de gala, a composição de uma obra literária, a pintura de um quadro ou a confecção de um bordado, ela não pôde ser assim tão refinada, calma e delicada, tão branda, tão afável e cortês, comedida e generosa. A luta armada foi uma insurreição, um acto de violência contra a violência colonial.“

O regresso a Zâmbia fez-se com peripécias e uma penosa marcha. Seguir-se iam curtas estadias em países como Cuba e Chile. Em Cuba Manuel Videira juntar-se ia com a então mulher Ana Maria e os filhos Mwana e Paulo para entrar num novo ciclo da sua vida: o Congo Brazzaville.

Congo Brazzaville 1972-1975

Neste período podemos acompanhar, na narrativa do autor, a sua participação no filme Sambizanga, o contexto de crise vigente no MPLA entre 1972 e 1974. As suas reflexões acerca do movimento de reajustamento da Frente Leste e da Frente Norte, a criação da revolta activa, o congresso de lusaka; e o regresso da questão racial com a entrevista de Lúcio Lara, ao semanário noticias, E, claro, algumas notas acerca do contexto vigente no Congo Brazzaville.

No Congo Brazzaville, não houve repouso do guerrilheiro. A começar pela sua participação como actor no filme Sambizanga. Ironicamente, o seu papel representava tudo aquilo que combatera. Manuel Videira desempenhou o papel de agente da PIDE/DGS . Aliás, já em Luanda Manuel Videira poderia ter pago um preço bem alto por ter tido o papel de vilão no filme. Mas, Manuel Videira voltaria ao seu papel de actor político no quadro do estado de crise vivenciado pelo MPLA entre1972-1974. Estado de crise que se iria traduzir, tanto na Frente Norte como na Frente Leste, em sucessivas manifestações de descontentamento no seio do MPLA.

Estas, foram adquirindo formas de contestações, e revoltas contra a direcção política liderada por Agostinho Neto. Referimo-nos à crise e racial na II Região político-militar; à denominada Revolta do Leste liderada por Daniel Chipenda; e ao surgimento da tendência Revolta Activa também na 2ª região político-militar, grupo heterodoxo constituído por obra e graça de Gentil Viana, o mesmo que tinha tido um papel fundamental no movimento de reajustamento na Frente Leste. Manuel Videira irá participar nesta dinâmica de questionamento da direcção do MPLA, aderindo à Revolta Activa. Uma tentativa de suplantar a crise vigente no seio do MPLA foi a realização do Congresso de Lusaka (Zâmbia), em Agosto de 1974, que reuniu as duas tendências revoltosas (RL e RA) e a ala liderada por Agostinho Neto ( “ala presidencialista”). O congresso iria saldar-se por um fracasso, tendo a “ala presidencialista”, liderada por Agostinho Neto abandonado o mesmo.

 

Não resisto a assinalar dois momentos do fatídico evento descritos pelo autor:

– O controverso discurso de Nito Alves,pautado por um virulento ataque à Revolta Activa e, a devi-da reacção dos seu membros aos “dikelengues” do mesmo.

– O segundo momento, magistralmente descrito, com um toque shakespeariano, é o abandono porparte de Agostinho Neto dos trabalhos do Congresso e que Videira definiu como “cena dramática erealmente histórica.” E que prenuncia, provavelmente, mormente alguns acordos pontuais entre adirecção do MPLA/Neto e as duas tendências, um processo de ruptura radical. Ruptura que seriapontuada pela extinção das duas Revoltas e a afirmação da corrente netista como legítima represen-tante do MPLA e a posterior consagração de Agostinho Neto como primeiro presidente da Angolaindependente. Mwambaka já estava em Angola.

 

Angola 1975-1978

De entre as memórias da vida angolana de Manuel Videira pode-se salientar o seu gradual afastamento da vida política; a relação apaixonada com Lizete Antas, a dama de jimy carapinha que Mwambaka travara conhecimento em Brazzaville e cito: “E assim desabrochou a última grande paixão da minha vida, no meio de uma tempestade social e política de densidade tropical. É compreensível!!

Chegamos ao momento, provavelmente, mais dramático da vida do autor. A descrição do processo que iria levar ao seu encarceramento. E que merece uma breve e fragmentária conjectura, da minha parte.

Ao longo do livro nota-se que a vida de Mwambaka teve como pano de fundo a violência, nas suas múltiplas formas: racial e colonial, violência da luta de guerrilha; violência no seio do próprio MPLA. A estas múltiplas formas de violência o autor respondera sempre com uma “férrea disciplina”. Ora, acontece que no processo da sua prisão fora-lhe retirado o mecanismo que permitira suportar os desígnios da violência: a disciplina. Pela primeira vez, Videira sujeita-se a um processo de insiciplinamento do corpo, provável razão contributiva para o modo como descreve as etapas que o levariam a prisão: desespero, indignação, dor e sofrimento.

Por fim, gostaria ainda de sublinhar, alguns aspectos que remetem para a importância da obra para as ciências sociais, em particular para História.

Manuel Videira interrompe frequentemente a sua narrativa para se dedicar a breves retratos de personalidades, na sua maioria militantes do MPLA: Viriato da Cruz, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Eduardo Macedo dos Santos, Gentil Viana, entre outros. Ao retratar estes personagens, Manuel Videira contrasta, de certo modo, com certos géneros “biográficos” amiúde submissos: “ao elogio exagerado dos grandes homens ou ao registo hagiográfico em que a santidade é servida aos penitentes para ilustração e redenção terrena3.” Mas a leitura deste livro abre, igualmente pistas para outras abordagens, do universo político-militar MPLA, na medida em que as suas observações não se esgotam no quadro de dinâmicas politicas, ideológicas ou organizacionais, nem no âmbito da máquina militar. O olhar de Videira indicia um pulsar do MPLA manifestado em territórios diferenciados, em tempos variáveis e em múltiplas práticas materiais e simbólicas. São observações que apelam para um ponto de vista relacional e globalizante pois, a luta armada não deixa de ser um fenómeno histórico e socialmente construído, complexo e multidimensional. Há mais mistérios na luta armada de libertação nacional do que a produção historiográfica.

O que foi apresentado aqui foi um trailer de um livro. Uma gota no oceano de palavras que constam nas memórias de Manuel Videira, com as suas lacunas, omissões, selectividades e esquecimentos (conscientes ou inconscientes); amnésias e juízos de valor. O exercício da memória confere-lhe este direito.

Todavia, considero que este oceano de palavras contém um conjunto de novos significados contributivos para a reconstituição do acontecimento histórico. E, neste sentido, este livro, para mim, foi uma revelação. Mas a revelação não se ficou por aqui. Pois, no decurso da leitura da obra, fui deparando-me com um personagem digno de um fresco cinematográfico. Personagem singular, assaz complexo cuja trajectória impele-me, constantemente, a perguntar a mim mesmo, se a vida deste senhor não teria tido mais imaginação do que os meus sonhos.

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