Fernando Venâncio apresenta-nos os Erros Falsos

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É com muito gosto e muita honra – bem sabemos que é um chavão, mas aqui usado com inteira justiça – que trazemos aos nossos leitores o magnífico texto que Fernando Venâncio escreveu para a apresentação do livro Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português, de Marco Neves. 

 

Fisiologia do linguista instantâneo 

Fernando Venâncio

 

Temos a inestimável sorte de ver reunidos por Marco Neves neste livro, Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português, um bom número de inauditas opiniões que andavam por aí dispersas, acerca do nosso idioma. E não só dispersas: também inculcadas como ciência séria, e isso com uma convicção que arrepia. Seria bom que essas opiniões peregrinas nos chegassem com aviso de recepção. Mas não. O próprio dos dislates é exactamente não se anunciarem convenientemente.

Em contrapartida, esta intervenção de Marco Neves aparece com um endereço. Nitidamente, o autor busca e identifica um interlocutor. Verdade seja que eles são vários, os interlocutores, já que ninguém seria capaz de produzir sozinho os desastres aqui expostos. Mas essa exposição define, diria mesmo constrói, um só interlocutor, um tipo abstracto, permitindo traçar dele uma ‘fisiologia’. Gosto dessa noção, ‘fisiologia’, muito popular entre a intelectualidade do século dezanove. Ela empresta à abstracção um elemento sensível, físico, e com isso temos logo maior solidez debaixo dos pés.

Quem é esse interlocutor de Marco Neves? É, certezinha absoluta, uma personagem de rosto severo, alguém para quem a humanidade não anda aqui para brincadeiras. Para ele o mundo não é de confiança, e mais depressa descamba do que se orienta para aquilo que poderia interessar. Essa personagem pode ser crismada como o linguista instantâneo. Nunca lhe aconteceu ter pensado em determinada particularidade do idioma? Pois bem, confrontado com essa particularidade, tem a respeito dela imediatamente uma opinião, e uma opinião pronta, definida, definitiva. Meios-termos, dúvidas, ponderações não são com ele. Só que ele não se reconhece, nem poderia jamais reconhecer, como o interlocutor deste livro de Marco Neves, como o outro lado dessa reflexão. Confinado a si mesmo, nada consegue conceber fora de si, menos ainda em frente de si.

 Mas atenção: não se pense que o linguista instantâneo dispensa certos critérios. Ele é primário, mas não é parvo. Recorre a princípios. Um desses princípios, verdadeiramente fundamental, sustenta que, sempre que surjam duas possibilidades de solução, uma delas está incorrecta. Se são pensáveis duas versões, digamos “Prefiro não me comprometer” e “Prefiro não comprometer-me”, uma delas está errada. O contrário seria instituir o caos. Marco Neves exprime-o desta maneira:

             Uma ou outra vez, a resposta a quem diz que «estão ambas correctas» é aquele velho: «Mas agora podemos dizer tudo?»

 Lá se iria, com efeito, a consistência do mundo. Marco Neves também o diz assim:

             Como o simplificador implacável está convencido de que sabe descrever conscientemente toda a gramática da língua, sempre que encontra lugares menos arrumados ou recantos em que ainda não tinha reparado, considera-os erros («se eu não sabia esta regra, então a regra não existe»).

Não digam que aqui não fala a sabedoria. 

Mas não se esconde aqui um risco? Claro que se esconde. Os princípios são firmes, certo, mas a urgência em definir posições não assegura uma conveniente contenção de danos. E, assim, quase tudo no idioma pode excitar o olhar crítico do inventor de erros. Marco Neves descreve-o assim:

             Como há muita insegurança linguística e corre por aí a ideia um pouco exagerada de que ninguém sabe falar ou escrever bem, muita gente está disposta a aceitar que a palavra ou a construção é erro só porque alguém se lembrou de dizer que sim.

Repare-se nesta delícia de subtileza: «a ideia um pouco exagerada de que ninguém sabe falar ou escrever bem». Essa ideia vive, efectivamente, em muita gente, aflorando sobretudo em comentários no Facebook, e faz parte das convicções mais arreigadas (e, na realidade, mais aconchegantes) do linguista instantâneo.

Sim, ele, o linguista instantâneo, tem-se em alto apreço. Sabe-se imbuído duma alta missão: a de endireitar o Mundo. Nada menos do que isso. Sabe-se, no desempenho dessa missão, imensamente perspicaz. Não, em séculos de observação, ninguém tinha chegado a essa descoberta que a ele custou só coisa de segundos. Como a língua também é dele (e é), quer mostrar quanto também manda nela. E, assim, declara “Podes ligar-me?” correcto, e “Podes-me ligar?” incorrecto. Ou o contrário. É tudo um tanto infantil, mas enquanto o fazem sentem-se uns Reizinhos da Língua.

Infelizmente, foi já demonstrado que exactamente as pessoas com menos informação factual são aquelas que apresentam mais firmes opiniões. Sim, a relação do inventor de erros com o idioma é tortuosa, mesmo doentia. Isso traduz-se em posturas intolerantes, compulsivas, mas por vezes oh tão surpreendentes. Poderá, de facto, falar-se a tal respeito em “posturas”, quando posturas… são coisas de galinhas? E pronto, eis novamente criado um inesperado cenário, e logo um tão sagaz, tão desafiador das tranquilas e singelas concepções de todos aqueles outros, os acríticos observadores. E deste modo o linguista instantâneo continua a sonhar com um idioma arrumadinho, com cada coisa no seu lugar, no seu único lugar. E isso por todo o sempre.

Percebe-se nos inventores de erros uma espécie de sistemático, universal cepticismo, naturalmente muito chique, que admite ser o idioma, sim, coisa linda, mas nunca satisfatoriamente realizável. Por isso eles nunca se declaram satisfeitos  com o que quer que seja. “Olha que bom!” é um estado de espírito em que nunca os apanharemos. Esta é a fisiologia do linguista instantâneo.

Há pior do que isto? Há. Isto ainda não é o fundo do poço. Pior é aquele sorriso monotonamente escarninho que aflora em comentários no Facebook, assinalando a definitiva idiotice alheia. “Olha este pateta”, “O mundo está cheio de palermas”. Eis o que constantemente escorre duns dedos levianos percorrendo o teclado.

Não, o linguista instantâneo usa de maior sofisticação. Ele observa, reflecte, analisa, e o que vê não é bonito. A sua leitura do idioma, e mesmo da História, é a duma inelutável decadência. E tudo o que alimente, ou possa alimentar, essa deprimente leitura do mundo é a sua única alegria.

O preço é, pode adivinhar-se, altíssimo. Os sacerdotes e sacerdotisas do erro vivem num contínuo desassossego. Sentem-se injustiçados, e cada “erro” que encontram, que inventam, é um novo acto de vingança. Vingança, ainda por cima, frustrante. Porque, se é necessário trazer os outros debaixo de olho, é pelo menos tão premente que não sejamos nós próprios achados em falta. Ele é, em suma, um pessimista profissional, que. à cautela, parte do pior cenário. Isto proporciona-lhe segurança.

Cria-se, assim, uma espiral negativa de medos, de desconfiança, de possível acusação. No final, o terror de ser apanhado faltoso leva a declarar tudo potencialmente faltoso. Não, a paisagem íntima do inventor de erros não há-de ser invejável.

O fenómeno é interessante, digamos mesmo fascinante. Essa atenção compulsivamente hipercrítica ao desvio gera, como perverso subproduto, a generalização do “erro falso”, e essa desgovernada hipercorrecção cria, ela mesma, uma dinâmica de… mudança. Seja porque a malta acredita que aquilo é mesmo erro, seja porque acabará revoltando-se contra essa linguística de aviário, e resolve muito seriamente partir à aventura.

Caros Senhores e Amigos: A informadíssima e amena divulgação a que o linguista e professor Marco Neves aqui se entrega é (aproveitemos nós o lugar-comum) um verdadeiro serviço público. Importa, por isso, felicitar o editor da Guerra e Paz, Manuel S. Fonseca, por mais esta jóia no seu catálogo. Deve dar um especial conforto poder oferecer a um público ávido de reflexão linguística uma obra sólida e aliciante como esta que o Marco Neves para nós produziu.

Muito obrigado.

 

 

 

 

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