Gramática e Harley-Davidson

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Gramática e Harley-Davidson

A primeira vez que senti verdadeiro prazer em conduzir foi numa das últimas aulas práticas. O instrutor pediu-me para levá-lo a uma loja da Harley-Davidson e para esperar por ele no carro.

Quando voltou, com os seus cabedais no saco, sentou-se e disse-me apenas:

– Vá, vamos embora para a escola.

Não me disse para pôr a primeira, não me pediu para olhar pelo espelho, não me deu, aliás, nenhumas instruções. Apenas um pedido, um objectivo – eu já sabia como fazer tudo o resto.

E foi assim que, usando o que tinha aprendido nas aulas, olhei pelo espelho, pus a primeira, carreguei no pedal – e lá me subiu pelo corpo o prazer em sentir o carro a acelerar pela estrada sob o meu comando. Hoje, muitos anos depois, conduzo de forma que me parece natural. Os gestos estão mais do que aprendidos.

Ora, escrever é como conduzir: aprendemos as regras e os gestos de forma consciente, nos primeiros anos de escola, mas, a certa altura, já nem notamos que regras e gestos são esses: simplesmente avançamos para o nosso destino. Tal não significa que não haja acidentes pelo caminho – e não há como negar que há condutores melhores do que outros e que há condutores com uma condução mais confortável, enquanto outros nos deixam com o coração aos saltos (o que não deixa de ser bom em certos dias, desde que levemos o cinto de segurança posto).

A comparação que fiz acima é perigosa: escrever é como conduzir, de facto, no sentido em que aprendemos as regras da ortografia na escola. Mas, no entanto, as regras gramaticais, aquelas que nos permitem criar frases – essas não são aprendidas na escola, pelo menos na sua maioria.

Aprender a gramática é bem mais parecido com aprender a andar. Aprendemos a andar através da imitação, da tentativa e erro e, sim, do incentivo dos pais e demais família. Ninguém nos ensinou de forma consciente, no sentido de nos dar instruções e explicações de como funciona o corpo.

Começamos a andar. Fazemo-lo um pouco a medo, no início, mas logo ganhamos confiança. Há uma série de mecanismos cerebrais e motores envolvidos no processo, mas não pensamos neles – nem sequer os conseguimos descrever.

Aprender a falar é um pouco como aprender a andar. Também vamos lá através da imitação, da tentativa e erro e do incentivo dos outros. Neste caso, as quedas são as reacções de quem fala connosco – mas, curiosamente, aprendemos as regras da língua (na oralidade) mesmo que ninguém nos corrija. Ao fim de alguns anos de treino, o cérebro já reconstruiu, em cada falante, um sistema de regras e excepções – um sistema que nos permite falar (às vezes connosco próprios).

Sim: a gramática que descrevo neste livrinho já estará no cérebro de quem o lê.

Dou um exemplo concreto: ninguém que fale português terá dificuldades em perceber que o futuro do indicativo que usei no parágrafo anterior («estará») não remete para o futuro – remete para uma grande probabilidade, sem certezas… Usei-o porque pode dar-se o caso de o livro ir parar às mãos de quem está a aprender a nossa língua agora – e, por isso, não sabe português. Ora, este uso do futuro está registado nas gramáticas, mas não é necessário lê-las – e muito menos decorá-las – para o conhecer. Faz parte das regras que os falantes da língua levam na cabeça. Os falantes não saberão apenas interpretar este uso do verbo – saberão também que é um uso relativamente formal, comum na escrita, menos comum na oralidade…

Na verdade, o leitor sabe isto tudo, mas talvez não saiba que sabe. O fosso entre aquilo que sabemos fazer com o português e aquilo que sabemos descrever sobre a língua é enorme. Os linguistas – cientistas que se ocupam da pesquisa e descrição dessas regras – andam, às centenas, a garimpar nesta mina, e ainda há muito por descobrir.

Os falantes conhecem a gramática mesmo quando não conhecem os nomes técnicos. Há um tempo verbal em português para expressar aquilo que acontece de forma repetida nos últimos tempos. É o pretérito perfeito composto do indicativo – mas mesmo quem nunca tenha ouvido este nome saberá interpretar a seguinte frase:

(1) Tenho visto muitas pessoas a olhar para a montra e a entrar.

Também podemos expressar que havia qualquer coisa que costumávamos fazer no passado – e para isso basta mudar a forma ao verbo e deixá-lo no imperfeito do indicativo. Ora, mesmo que nunca tenhamos reparado nesse uso do tempo verbal, saberemos sempre interpretá-lo bem.

(1) Eu ia muito ao cinema, mas depois nasceram os meus filhos.

Talvez saiba isto ou talvez não – mas saberá certamente usar estes tempos verbais!

Todos temos uma gramática inteira na cabeça. Nem sempre a usamos de forma desenvolta, às vezes enganamo-nos, há diferenças entre as gramáticas em duas cabeças diferentes – mas todos temos a gramática na cabeça. Mesmo quem não sabe escrever.

Esta gramática essencial vai levar-nos numa breve viagem por essas regras do português que todos conhecemos. Centrar-se-á na gramática do português-padrão (como veremos, não é melhor do que outras variedades do português, mas é aquela que é ensinada na escola e usada na escrita) – e centrar-se-á também no português escrito, dando algumas pistas sobre como usar melhor o português nesta forma um pouco mais limitada e difícil de dominar. Não servirá para ensinar ninguém a falar ou a escrever em português. Todos os leitores saberão português – e saberão escrevê-lo. Servirá, isso sim, para ajudar a escrever melhor.

Afinal, se falar é natural e segue uma gramática que aprendemos sem pensar nela, quando aprendemos a escrever, temos de aprender conscientemente algumas regras – por exemplo, as regras da ortografia e aqueles pontos da gramática em que a língua que tem na cabeça se afasta do português-padrão. Mais, ao escrever, temos de lidar com uma situação artificial: as palavras estão no papel, e a gramática que nos sai naturalmente quando falamos vê-se ali espremida em rabiscos de tinta, pronta a ser corrigida por outras pessoas. É bem diferente de conversar – e um pouco mais arriscado. Além disso, é habitual usar um registo formal na escrita que não é tão fácil de usar, por ser menos frequente no dia-a-dia.

Esta gramática tem, assim, como um dos objectivos ajudar a escrever um pouco melhor. Mas há mais: também gostava que o leitor sentisse algum prazer pela redescoberta do mecanismo que temos dentro da cabeça. Depois, tal como um bom condutor não tem de saber mexer nas peças do carro que tem nas mãos, saber os nomes ajuda muito, nem que seja a descrever ao mecânico os problemas que o carro tem.

Ora, em muitas discussões sobre a língua, nem sempre temos os termos adequados para falar dos factos da língua. Se esta gramática não servir para mais nada, servirá para relembrar alguns desses termos. Pode servir também como cábula para os pais e avós que gostariam de conversar com os filhos sobre o que estes estão a aprender na escola, mas percebem que a terminologia é hoje um pouco diferente. Não são diferenças dramáticas – continuamos a ter «nomes», «verbos», «sujeitos», «complementos directos» –, mas são diferenças que podem criar algum ruído nessas conversas. Note-se que, ao contrário do mito muito espalhado, a gramática que hoje se dá na escola é muito complexa – aliás, alguns diriam demasiado complexa. Nem sempre, fora das escolas, se sabe que os alunos têm de saber distinguir – só para dar um exemplo – entre constituintes das frases (um grupo nominal ou um grupo verbal) e as funções sintácticas que esses constituintes podem assumir. Digo que não se sabe não porque não seja fácil verificar – apenas porque as ideias sobre a língua, ao fim de uns anos fora da escola, tendem a simplificar-se, a assumir contornos quase míticos, deixando muitos falantes agarrados a um punhado de ideias ou termos avulsos, que usam para falar de tudo o que tenha que ver com a língua. Esta gramática tentará recordar alguns conceitos, mostrar a terminologia actual e arrumar tudo numa estrutura geral que nos permita perceber, em traços largos, a gramática do português.

Sendo uma gramática essencial, não é – por definição – exaustiva. Haverá muitos aspectos que ficam de fora do livrinho que tem nas mãos, que foi pensado para ser lido do princípio ao fim: quer dar, de um só golpe, uma ideia geral do funcionamento da nossa língua – e quer ajudar a escrever melhor. Desta forma, tento polvilhar o texto de sugestões e esclarecimentos que tornem o volume útil e prático para o uso no dia-a-dia.

Índice

1. O que é uma regra de português?
1.1. Gramática e Harley-Davidson
1.2. As regras nascem nos livros?
1.3. Que disciplinas estudam a língua?
1.4. O que é a gramática?
1.5. O que é a norma do português?

2. O armazém das palavras
2.1. Peças para construir palavras
2.2. Armazéns de porta aberta
2.3. Os parafusos da gramática
2.4. Palavras feitas de várias palavras
2.5. Como criar palavras novas?

3. A máquina das frases
3.1. O molde da frase
3.2. Como fazer perguntas (e não só)?
3.3. Como criar frases infinitas?
3.4. A língua na oficina
3.5. Como escrever frases inesquecíveis?

4. Como criar um texto
4.1. Investigar
4.2. Planear
4.3. Escrever
4.4. Reescrever
4.5. Arriscar

5. O verniz da escrita
5.1. Dúvidas e armadilhas
5.2. Pontuação
5.3. Sinais
5.4.
Abreviaturas, siglas, acrónimos e números
5.5. Maiúsculas e minúsculas

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