Caro Guilherme
Já fui ler várias vezes a tua curta nota a anunciar que deixas de ser o editor da Gradiva. Acho que ainda terei de voltar a essa tua breve mensagem mais algumas vezes. E o que te quero dizer é que, por um lado, serás sempre o editor (o grande editor) da Gradiva: para os leitores que tu «ensinaste» a ler, os leitores que soubeste «cativar», como o Principezinho faz à Raposa no deserto; serás sempre o editor da Gradiva (que nome para uma editora, tão bem e freudianamente roubado a delírios e sonhos) para os autores, os livreiros (sobretudo os muito bons livreiros), os outros editores, os críticos literários ou não-literários; serás sempre o editor da Gradiva para quem, a começar pela Helena Rafael, pertence e trabalha na Gradiva e ao teu lado ajudou a pôr tijolos nos muros dessa casa de pensamento, de conhecimento, de romance (e a bd, e a bd que te põe um sorriso na cara) que tu quiseste e soubeste criar.
Lembro-me de ti, o mais adulto dos alunos de Filosofia nesses anos finais da década de 70, meu colega na Faculdade de Letras, ambos de unha com carne com essa provocadora e desafiadora figura que era (é) o José Gabriel Trindade Santos, que nos ensinou tudo, de Platão (sempre, sempre) a Thomas S. Kuhn. Tu publicaste-o a ele, ao nosso professor, e eu ao Kuhn. Quem diria, nesses anos de inocência, que era nisto que desaguaríamos? E lembro-me da tua inteligência aguda, combativa, de argumentação sistemática e implacável.
Faço bem lembrar-me porque foi essa inteligência que trouxeste para a edição em Portugal. E um espírito de combate só ao alcance de uma mente corajosa. Foi com os teus combates que vestiste a tua Gradiva (ficou linda): combate pela língua portuguesa, combate pelo ensino contra o gargantuesco desastre que foi o «eduquês», combate pela ciência ao lado de Mariano Gago, de Carlos Fiolhais, dos teus Carl Sagan e Richard Feynman.
Não sei se consegui, mas quis (quero) pôr neste texto a funda admiração (e a muita sufocada escondida inveja) que tenho por ti, Guilherme Valente, editor da Gradiva. E não julgues que é com essa tão fugaz nota que resolves o assunto. Tens a obrigação de nos escrever sobre os terramotos que agitaram o teu corpo e o teu espírito nessas décadas em que serviste Portugal e os portugueses como editor. O que sonhaste, o que te motivou, que tristezas e desfalecimentos, que incontáveis alegrias e delicadas glórias.
Guilherme Valente, editor da Gradiva e meu amigo, fico à escuta e abraço-te com galhardia.
Ps – e vou voltar, incrédulo, a ler a tua breve nota, deixando um beijinho à Helena.
Manuel S. Fonseca