Independência de Angola, dia e noite

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Casa de Angola

Escrevi para esse livro esta nota introdutória e disse as palavras que se seguem, na apresentação do livro, na Casa de Angola, em Lisboa, ontem, 11 de Novembro, 44 anos depois da independência.

As notas de editor a precederem livros dos seus autores, não sendo a regra, não são também nenhuma novidade. E a minha nota tem uma justificação substantiva: é que eu, de 11 de Novembro de 1975 a 3 de Março de 1976, estive do outro lado. Vou dizer-vos onde é que eu dormi em quatro inesquecíveis noites da minha vida.

Dormi no Lobito, no meu pequeníssimo apartamento de militância política, sem cozinha, a 10 de Novembro de 1975. A 11 de Novembro dormi no Sumbe, a antiga Novo Redondo, ao monte, num quarto de hotel que ocupámos no recuo das Fapla. A 12 de Novembro dormi numa velha pensão de Porto Amboim e a 13 de Novembro estava a dormir na casa de amigos em Luanda. Nessas quatro noites e quatro dias, andava o Onofre, entre o Ambriz e Kinshasa, a preparar-se para zarpar a Sul e vir ocupar o Lobito e o Sumbe, que nós tínhamos abandonado.

Ou seja, se aceitei escrever uma humilde prosa no livro e se hoje estou aqui, aceitando o desafio do Onofre para apresentar este seu belo livro, é apenas porque estamos a falar de memórias pessoais e a confrontar memórias pessoais.

Longe de mim a peregrina ideia de falar da independência de Angola com pretensões de historiador ou de analista político ou de geo-estratego. Esqueçam lá isso, meus irmãos ou meus camaradas.

Estou aqui para falar de sensações, da profunda alegria pessoal, dos sonhos de juventude do Onofre e dos sonhos que tantos combatentes angolanos, de Holden Roberto a Daniel Chipenda, passando por José N’Dele, testemunham neste livro, tenham ou não estado no lado certo da História se é que a filha da caixa da História tem um lado certo.

Fiz com o livro do Onofre uma coisa que raramente faço: voltei a ler o livro depois de o publicar.

Em primeiro lugar, fiquei contente com o trabalho que o meu pessoal fez. Bem sei que elogio em boca própria é vitupério, mas a mim convém-me, como patrão, passar carinhosamente a mão pela pele dos meus queridos trabalhadores: fizeram um livro que eu, como leitor, gostei de segurar na mão e seguir página a página.

Bom, adiante. Lembram-se que ainda há pouco falei da História e das manigâncias da História. Pois bem, quero, agora, fazer uma afirmação que se saísse só da minha boca seria pura demagogia, mas que o livro de Onofre dos Santos esplendidamente comprova e torna verdadeira: vale mil vezes mais a Vida do que a História. E a Vida plena, contraditória, imprevisível é a força deste livro.

Nos livros de História, surgem as grandes forças políticas, o MPLA, a FNLA, a UNITA, surgem os contextos geo-estratégicos, o bloco soviético, o apoio americano, as arrebanhadas tropas cubanas ou sul-africanas, os grandes movimentos militares, batalhas gloriosas ou verdadeiras carnificinas. Mas neste livro, com o rumor de fundo da História sempre presente, o leitor entra na intimidade dessas figuras que a História usa apenas na formalidade de um nome e da sua acção.

Aqui, em Os Meus Dias da Independência, na página 68, a 5 de Dezembro de 1975, podemos sentar-nos ao lado de Hendrick Vaal Neto e esquecer que ele era ministro das Relações Exteriores do governo FNLA-Unita da República Democrática de Angola, para o ouvirmos rir, no Cine-Atlântico, no Huambo.

Bom, pelo que o Onofre conta, é um riso que manda abaixo uma casa, os dois, Hendrick e Onofre, sentados a ver um filme do cómico mexicano Cantinflas, Às Ordens de Vossa Excelência. A História não quer saber do Cantinflas, nem do riso de Hendrick, porque ao falar da independência de Angola, converte o processo que lhe seguiu num continuum de guerra. Ao proceder assim, a História pode não estar a mentir, mas só conta metade do que se passou, omitindo uma tonelada de realidade. Mesmo nos interstícios da mais pesada e dura das guerras, há interstícios de risos, de filmes, de livros. Há mesmo quem faça amor. E, verdade se diga, faz-se amor com mais vontade, com mais urgência, talvez até com mais verdade.

A 7 de Dezembro de 1975, Onofre está, por exemplo, no quarto 303 do Hotel Roma, no Huambo. Eu lembro-me, em 74, estava a fazer a recruta na Escola de Aplicação Militar de Angola, depois de termos feito várias revoltas no quartel, de me ter aboletado numa pensão rasca mesmo em frente a esse hotel, onde eu ia, porque um camarada meu, com mais massa, mas com os pés desfeitos pelas botas da tropa, tinha lá quarto. Não sei se era o 303.

Mas vejamos, o Onofre está no hotel e já não há água canalizada. Um obus terá rebentado o fornecimento àquela parte da cidade. E é nessa manhã Jonas Savimbi entra em rota de colisão com Daniel Chipenda. Discursa com a veemência de magnífico tribuno que era. O que Savimbi diz é, esclarece Onofre, uma declaração de guerra a Chipenda, mais uma guerra, intestina, no meio da guerra maior que opõe a FNLA-UNITA ao MPLA.

Mas há dois pormenores deliciosos que o livro de Onofre nos dá mostrando-nos a vida no meio da História, que a História nunca registará. No primeiro, vemos o próprio Onofre, sem água, a lavar os dentes com os restos da cerveja que ficara num copo na noite anterior.

Um romancista não inventaria um pormenor destes, só a vida escreve em livro episódios assim, tão caricatos que só podem ser veradeiros. Este é um detalhe inesquecível. Mas há mais e lá chegaremos.

Agora, vejam o outro pormenor. Johnny Eduardo chega ao aeroporto do Huambo nesse dia em que Savimbi anuncia que quer liquidar as tropas de Chipenda. Recebe-o José N’Dele e outros elementos da UNITA. Johnny desabafa com eles: “Assim não pode ser.”

Reparem, esta não é uma declaração política, é apenas o mais humano dos desabafos, uma confissão de desalento, prova também de que Johnny Eduardo tinha alguma forma de esperança numa coligação que juntava Holden, Savimbi e Chipenda. A História não quer praticamente saber da íntima convicção, da crença ou confiança ou desilusão das suas personagens. A História talvez nos diga que toda essa coligação foi feita por calculismo político-militar e que a coligação estava condenada desde o primeiro segundo. A Vida quer, quer saber da convicção, sentimentos e expectativas dos homens que fazem a História e caça, neste desabafo, neste quebranto, a verdade humana, a humaníssima ilusão que vai correr bem, mesmo o que nem Deus, nem o Diabo conseguirão fazer que corra bem!

É a memória dessas fatias de vida que nos enriquece e nos dá um património comum. Os Meus Dias da Independência é mais do que uma fatia, é uma suculenta refeição de Vida que oferece facetas imprescindíveis para que os angolanos recomponham o puzzle das suas memórias, reconstituindo as memórias com Vida de personagens que tanto peso tiveram na sua História.

O motivo político e histórico maior deste livro é a descrição, passo a passo, da tentativa de de construção de um governo para a República Democrática de Angola, cuja independência Holden declarara no Ambriz e Savimbi no Huambo. Escolhido por Holden, Onofre vai ser o ministro da justiça desse governo, de que serão primeiros-ministros, em regime rotativo, José N’Dele da UNITA e Johnny Eduardo da FNLA. As incidências, confrontos, bem e mal-entendidos da formação e exercício desse governo, tão ameaçado por Luanda, com a crescente pujança militar das Fapla, como dilacerado internamente pelas divisões de que o conflito entre Savimbi e Chipenda é o ponto supremo, esse é o material que abre o guloso apetite de historiadores.

Mas a par desses relatos há outros relatos. É tocante ver Onofre, a 14 de Dezembro de 1975, página 75, numa missa que o povo do Huambo enche, um povo que busca a esperança e consolo num céu que o redima da exposta vulnerabilidade que a vida na terra, a tiros, obuses e escassez, lhe traz.

E é bonito e faz-nos sorrir ver o Onofre dançar. Slows de preferência. Em pequeninas festas domésticas no Huambo. Mas também no Calema, a minha buáte do Lobito. Não me venham dizer que essa busca de afecto e ternura, que é a dança, era um pormenor indispensável. Se me disserem, levo a mal. O que eu também dancei, em 75 e 76, quando se ficava em casa até às 6 da manhã, à conta do recolher obrigatório. Dançar, por muito mal que se dance, e eu danço muito mal, mas tenho a certeza de que o Onofre é um esplêndido bailarino, dançar é uma forma que o ser humano encontra de transfigurar a realidade, de a encantar pelo contacto e harmonia de dois corpos. É uma forma de sexualizar a realidade dando-lhe vida, num tempo em que a guerra omnipotente e omnipresente parece levar-nos a todos para o fundo poço da morte.

Onofre, como leitor, gostei muito e fez-me bem vê-lo dançar em tantas páginas de Os Meus Dias da Independência. E não se preocupe que eu não vou dizer aqui os nomes das moças com quem acaloradamente dançou. Há segredos de autor que o leitor autêntico nunca revela.

Meu Caro Onofre, há no seu livro, página 92 a 95, um momento que me comoveu muito. O conflito militar entre as tropas de Savimbi e as de Chipenda suspende-se. Holden está no Huambo e encontra-se no palácio com Savimbi, com todo o governo à espera do final dessa reunião. Só os dois mais velho, lá fora ainda há tiros e morteiradas.

Estão os dois lá dentro a negociar e alguém vem dizer a Chipenda que lhe mataram o cunhado nos tiroteios. Chipenda não diz uma palavra, só as lágrimas correm, pela face, pelas barbas. Não fala, não se mexe, como se fosse um homem de aço. Só as lágrimas têm o sofrimento, a pena, a perda do menino.

Nessas lágrimas de Daniel Chipenda estão as lágrimas de todas as famílias de angolanos, do Uíge ao Lubango, famílias e famílias sentiram espetar-se-lhe na alma, nesses anos e nos anos que se seguiram, a dor que só sente quando são irmãos que nos matam irmãos.

Depois, acabada a reunião de Holden e Savimbi, juntaram-se todos, cinquenta pessoas num jantar de consoada, Chipenda ao lado de Holden, Nzau Puna ao lado Savimbi. E foi Chipenda que fez um discurso de paz. Falou e começou a cantar pedindo a todos que cantassem com ele uma canção aprendida na missão.

A História corre a esconder-se de coisas destas. A História quer vitórias e derrotas, quer o arco do Poder. Nessa canção religiosa, nesse espiritual de que o Onofre nos fala e que eu tanto gostava de ter ouvido, não há Poder, há redenção.

Nessa canção, na melodia e no ritmo dela há uma busca de beleza que nos lava a alma da dor, do sofrimento. Quando o Onofre nos conta este episódio, confere a Daniel Chipenda uma humanidade e uma grandeza que nenhuma vitória militar, que nenhum exercício do poder lhe poderiam algum dia ter dado.

 É isto o que eu lhe queria dizer, meu caro Onofre. Fui para este livro à espera de ver as intrigas políticas, as conspirações, as guerras dos meus adversários. Página a página, descobri que não há aqui adversários, apenas homens cheios de ilusões e desilusões, homens tocados pelo desespero ou cheios de esperança, sempre banhados pela convicção de que podiam fazer de Angola uma pátria una. Era esse o ideal que os movia.

Quando o Onofre bate em retirada para Ondjiva, a antiga Vila Pereira d’Eça, diz que a coluna foge e tem medo. Medo do que o MPLA lhes pudesse fazer. Eu lembro-me do nosso medo, na retirada do Lobito. Medo do que UNITA nos pudesse fazer.

A maior lição deste seu livro é essa: o medo que os angolanos tiveram de outros angolanos não pode nunca mais voltar.

Hoje, dia em que Angola conquistou a dignidade da independência, 44 anos depois do 11 de Novembro de 1975, nenhum angolano deve ter ou voltar a ter medo.

Obrigado Onofre dos Santos pelo seu Os Meus Dias da Independência, um antídoto humano contra o medo.

Casa de Angola_

 

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