Lord Jim

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Não sei se gostava mais de o ter conhecido antes, depois ou, inteiro, agora. Antes, depois ou agora, para todos os efeitos Lord Jim nasceu em short story, fez-se por episódios em folhetim. Hoje, inteiro e em livro, é uma lenda. Num dia de ócio tive a pretensão de me apropriar dele pondo as minhas palavras portuguesas em cima das inglesas que são o sangue dele. A ousadia caiu desamparada ao fim do segundo parágrafo:

Tinha um metro e noventa, dois ou três centímetros menos, físico imponente, e caminhava direito a nós com balanço ligeiro dos ombros, cabeça para a frente, e um olhar fixo, de baixo para cima, que nos fazia pensar na investida de um touro. A sua voz era funda, sonora, e os modos testemunhavam uma espécie de persistente auto-afirmação que nada tinha de agressiva. Parecia uma necessidade, e era aparentemente dirigida tanto a ele mesmo como a qualquer outra pessoa. Era de uma limpeza sem mancha, trajando num branco imaculado, do chapéu aos sapatos, e era muito popular nos vários portos do Oriente onde ganhava a vida como encarregado de armazéns de provisão de navios.

Um encarregado de armazém não tem de fazer exame em parte nenhuma do mundo, mas deve ter Talento em abstracto e demonstrá-lo na prática. O seu trabalho consistia em bater em corrida, à vela, a vapor ou a remos, os outros encarregados na abordagem de qualquer navio prestes a ancorar, acenando vigorosamente ao seu capitão, forçando-o aceitar um cartão – o cartão de visita do armazenista – e, na sua primeira visita a terra, guiá-lo com firmeza, mas de forma não ostensiva, a um vasta loja, semelhante a uma caverna, cheia das coisas que se comem e bebem a bordo de um navio…”

Fascina essa imagem imaculada, de touro branco. E logo, nessa descrição de Joseph Conrad, que é de Lord Jim o cronista, adivinhamos uma mancha.  O chapéu branco, o alvo linho do casaco e das calças escondem, de irrepreensíveis, um passado. Disse “escondem” e arrependo-me. O linear significado do verbo não faz justiça à complexidade da personagem. O traje imaculado desperta a nossa curiosidade exigindo a procura dum passado que não se esconde, mas também não se revela gratuitamente.

Jim, após um treino de dois anos, embarcou para ser marinheiro. E o seu “ser marinheiro” fazia-o, cumpria-o, com um “um amor sincero”. Convalescente num porto do Oriente, a seguir a um pequeno acidente, embarca como imediato no Patna, um navio decadente, propriedade de um chinês ganancioso e fretado por um árabe para transportar 800 peregrinos muçulmanos a Meca. Começou a viagem: “Uma quietude maravilhosa impregnava o mundo, e as estrelas, juntamente com a serenidade dos seus raios, pareciam derramar sobre a Terra a certeza de uma segurança perpétua.” Na verdade, o universo limitava-se a reflectir a luz, a paz e a segurança de Jim. A outra verdade é que a harmonia do universo é sempre precária: a casca de noz podre que era o Patna sofreu, numa das noites, um brutal tremor, como se lhe tivessem dado uma pancada seca. Ao mesmo tempo, vindo do fundo das águas, rugiu surdo um trovão longínquo e arrepiante. Do embate o carunchoso Patna saiu maltratado, um rombo abaixo da linha de água, e inundação fatal como Jim verificou ao abrir a escotilha do pique de vante. O barco afundar-se-ia em minutos, salva-vidas haveria para menos de metade dos peregrinos que dormiam pacificamente, ignorando o que passava. Não sabiam, mas estavam já mortos. Todos. Não havia tempo e ninguém os poderia salvar – nada os poderia salvar, nem um milagre.

Quando subiu à ponte e o capitão lhe pediu silêncio, Jim sabia ao pormenor, ínfimo, o horror que ia acontecer. E que nada podia fazer. Nem por si. Resignou-se à morte: “Julguei que ia asfixiar antes de me afundar.” Não se impressionou, conhecia os seus deveres. Cumpriria o que tinha a cumprir com amor sincero.

Não era o que o capitão se preparava para fazer. Tão silencioso quanto possível fez descer um dos salva-vidas. Ele e os outros miseráveis tripulantes iam desertar, entregando os peregrinos ao sorvo do oceano e ao nocturno abraço da morte. Na direcção da ré, Jim viu os sinais de uma negra tempestade, do salva-vidas farrapos dos gritos dos outros: “Salte, George! Nós apanhamo-lo! Salte!’ ” Os claros olhos azuis de Jim viram uma vez mais o barco perdido, só uma precária chapa na proa sustendo ainda o afundamento inevitável, a raiva silenciosa do mar, as águas escuríssimas, a chuva a começar a varrer o convés. Segundos depois, Jim sentiu o seu corpo no ar, olhos cerrados até tombar sobre outro corpo no abjecto salva-vidas.

Acabava de se salvar, acabava de se perder. Desejou morrer logo ali: “ Era como se me tivesse atirado para dentro de um poço – para dentro de um buraco sem fundo…

Como não sei se conhecem a história, não quero estragar-vos a leitura Mas foi assim que, no final do século XIX, nasceu Jim, numa short story de culpa e desonra, ainda mais brutalmente exposta pelo salvamento do Patna e dos oitocentos peregrinos perpetrada pela ínvia mão do Omnipotente. Se a história tivesse terminado aqui, Jim teria sido consumido em fogo lento pelas chamas rubras do inferno. Só que Joseph Conrad, instado pelo editor da Maga, a Blackwood’s Magazine, decidiu seguir Jim e o terrível peso da honra perdida.

Em treze números da Maga, o escritor polaco escolheu inverter a narrativa bíblica. Por uma indecidível culpa – ainda hoje estou para saber se por mimética sede do conhecimento divino se por, em Eva, ter entrevisto, mais abaixo, lábios tão beijáveis como beijáveis eram os que acima já conhecia – Adão foi expulso do Paraíso. Na narrativa conradiana, se nalgum lugar, é no Paraíso que Jim pode talvez redimir-se do peso de culpa pior do que a herdade de Adão.

Marlow, o alter ego de Conrad, conduz Jim a Patusan, uma ilha remota onde o fará descobrir lábios, outra Eva e algumas indonésias bem aventuranças de Jardim Celeste. Tudo cercado pelo terrestre rumor da culpa e da indelével memória da fraqueza original e da ignomínia que a acompanha.

Lord Jim fica bem nesta Página Negra. Podemos beber com ele uma cerveja, uma água mineral que refresque a garganta e lhe permita, noite dentro, contar-nos, como contou a Marlow e Marlow a Conrad, a aventura de Patusan e de como, da abjecção, se ergueu a Tuan, Lord, Senhor de um romântico paraíso.

Manuel S. Fonseca

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