Luís Osório, seu autor

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Mãe, Promete-me Que Lês tem feito furor nas livrarias. Luis Osório é um autor de créditos firmados, mas este livro tem uma intensidade e uma sinceridade raras. Choca e mexe com os leitores. Aconselhamos vivamente a leitura. Está aqui e está em todas as livrarias portuguesas. Deixamos-lhe um excerto:

“No dia em que fiz catorze anos, ofereceste-me uns ténis que eram muito mais do que isso. Uns Adidas Patrick Sjöberg, que saltava em altura e era sueco, um ídolo. Custavam uns exorbitantes 13 contos. Como nunca pedia nada, ponderaste o assunto e ligaste ao meu pai para que entrasse com metade do dinheiro. Acabara de produzir alguns espetáculos e não deveria haver problema, só que a realidade nunca foi para nós tão simples como para a maioria. Fiquei chocado quando, com uma justa raiva, me pediste desculpa por não poderes comprá-los, ele não aceitara contribuir, o que era extraordinário porque, a bem da verdade, nunca nos dera nada. Abracei-te tanto, pedi-te para esquecer por ser uma parvoíce que nunca mais repetiria, um desejo supérfluo e sem sentido. Ficaste várias noites sem dormir. Tornaste a montar a máquina onde fazias agasalhos de lã e não paraste, noite atrás de noite, até chegares ao número de camisolas que precisavas para atingir os 13 contos que, vendo bem a esta distância, não serviram para me comprares os ténis, mas para mostrares de que massa eras feita, passara a ser uma questão de honra. Deixei de falar com o meu pai até perceber que não dera por isso, desisti. Voltou tudo a ser como até aí, melhor assim.
Agradeci-te nos meses em que estive gravemente doente, foste incansável. Uma febre reumática que inquietara bastante os médicos. As fotografias provam que envelheceste nesse ano, sei das noites (teriam sido dias?) em que ficaste sentada na cama a contar-me histórias de que não me lembro, em que me puseste Vic até me tranquilizar num cheirinho que sempre associarei a ti. (Sabes que numa noite difícil, sozinho em casa, já muito depois de teres partido, voltei a pô-lo no peito?) Pediste uma televisão emprestada para que assistisse aos jogos do mundial de 1978, na Argentina. Adorava a seleção do Peru com aquelas camisolas com uma lista na diagonal e sofri pelo Brasil, embora não consiga, ao contrário de 1982, identificar nenhum nome ou cara de um jogador. Estava na segunda
classe quando fui à cama, tudo tão repentino, sabes bem melhor essa história do que eu. Uma equipa de cães do Benfica e outra do Sporting, trapezistas e palhaços. As tias Cristina e Teresa levavam-me sempre ao circo do Coliseu, mas aquela noite de quase Natal acabaria por ser diferente. Senti-me estranho, não me recordo do caminho de regresso ao pequeno apartamento da Rua Carlos José Barreiros. Fizeram-me como sempre a cama na sala, adorava as mantinhas, o beijinho antes de dormir, as noites em que as acompanhava em filmes sempre comentados, o Verão Azul e os documentários da vida selvagem, as manifestações a que me levavam na esperança de que abraçasse a linha justa e proletária, a letra da Internacional que conheciam de cor, as palavras de ordem da CGTP, o «camarada» Álvaro, as histórias de todos os heroísmos comunistas, o sublime pudim de peixe (a melhor refeição da minha vida), as matrioscas no armário do quarto de dormir, os conselhos ao longo da vida, o que me tentaram demover quando me separei da Zé, como podia pôr tudo em causa? Nunca to tinha dito, mãe. Nunca te falei dos pormenores, apavorava-me a hipótese de me proibires de ir ter com as tias por fazer com elas o que não conseguia contigo. 
Conto-te agora por ter a esperança de que me leias e por já nada existir do que antes me foi decisivo.” 

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