Manifesto – Pelo que nos resta

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«Temos preferência por candidatos licenciados em Turismo», li num anúncio de recrutamento para o McDonald’s.
São estes os meus tempos. Não são o melhor desfecho para duas décadas de estudo, mas são tão reais quanto confusos.
Faço parte de uma juventude formada para o sucesso. 
Sou o resultado de uma educação genuinamente democrática, na qual não me educaram para falhar.
Nunca um professor me falou da probabilidade de vir a grelhar hambúrgueres para um patrão mais velho e menos educado do que eu. A faculdade não me ofereceu mais do que uma preparação para a vida académica. Por lá, propagou-se uma ideia simples: depois da licenciatura, o mestrado, seguido do doutoramento, findando numa carreira de investigador com a regalia de um generoso ordenado.

Numa sala com mais de 20 alunos, a maioria deles medíocres, a expectativa do mais alto sucesso foi a única a ser transmitida. Isto das poucas vezes em que nos falaram do futuro – tema que os professores universitários evitam a todo o custo. O truque é não falar no assunto e deixar que os licenciados partam para a vida, numa sucessão de trabalhos precários de pagamento mínimo, e que preencham um questionário acerca da empregabilidade pós-universitária. Desses questionários infere-se o seguinte: a maioria dos cursos resulta na empregabilidade dos seus formados; o ensino, nas mais diversas áreas, resulta.
E lá seguimos nós, rumo aos 30, saltitando de trabalho em trabalho, financeiramente impotentes para nos divorciarmos dos nossos pais. Moralmente falidos, também. 
Restam-nos as ajudas de custo para que dividamos um apartamento com estranhos e as ninharias que vamos acumulando para ficarmos bêbados ou pedrados nas noites de sexta e de sábado, ou para
apanharmos um voo low-cost para uma capital europeia e lá ficarmos durante cinco dias, ou para enchermos a cabeça de MDMA num festival de Verão e festejarmos as adolescências prolongadas que tanto condenamos.
Acreditamos que, com a nossa idade, os nossos pais estavam melhor. Aos 25, tinham eles uma casa, um carro, um casamento e um filho, e sustentavam-se com um emprego que lhes prometia uma carreira, por mais aborrecida que fosse, rumando aos 30, planeando um
outro filho. Muitos deles divorciaram-se antes dos 40. 
Hoje, o modo de vida dos nossos pais só a eles pertence, e está-nos tão selado quanto um regresso ao passado.
É complicada a nossa relação com o passado. Por um lado, e por incentivo escolar, reconhecemos nele uma série de horrores e injustiças para com o homem comum; de modo que facilmente nos deixamos
seduzir pela ideia de que a história tem sido, e que deve ser, um progresso material e moral. Por outro, deixamo-nos encantar pela sua aparente simplicidade. Isto acontece especialmente com o passado menos distante, ao qual facilmente acedemos pelo YouTube: são tão simples aqueles tempos capturados por uma lente de oito milímetros, e tão melhores as bandas sonoras desses tempos que, ao contrário dos nossos, parecem ter sido o palco de grandiosos eventos e da construção
de um classicismo.
Tivéssemos nós a sorte de termos um Woodstock, ou de sermos realmente revolucionários como os hippies ou como os punks, ou tão perigosos como os primeiros rappers, que ostentaram réplicas de
metralhadoras em entrevistas de horário nobre. Mas não, não temos essa sorte.
Pior do que isso: herdámos as revoltas dos nossos pais. Revoltas por liberdades que já temos.  Podemos ter sexo com quem quisermos e consumir as mais variadas drogas pelo nariz, pelo rabo, ou tacteando um comando wireless enquanto comandamos o destino de algo que só vive num ecrã.
Todos sabemos ler, praticamente. Pelo que não nos resta lutar pelo direito à educação.
Entre nós, poucos são os que não têm um computador ou um telemóvel que acede a um universo de informação mais rico do que a Biblioteca de Alexandria. 
Tampouco nos resta lutar pela liberdade de politizarmos a nossa insatisfação. Crescemos em democracias cimentadas e podemos queixar-nos do que quer que seja, culpando tudo, para além de nós próprios, pela dor de viver.
Não há muito por que lutar quando crescemos com o direito de confundir qualquer privilégio com um direito. A nossa luta, a única que nos resta, é pela felicidade contínua. 
Mas olhemos para o passado. Olhemos para o mais longínquo passado, para a pré-história, sigamos
o curso da evolução até aos nossos dias e testemunhemos que a narrativa da nossa espécie tem sido a de uma luta pela condição que nos perturba: a condição de quem já não teme a fome, mas a insignificância.
E que não nos escape o facto de que toda a vida neste planeta tem sido uma luta por condições estáveis, como esta, e que sair vitorioso dessa luta é a maior vitória de uma espécie.
Contrariamente aos milhões de organismos que vão simplesmente desaparecendo, nós, seres humanos, continuamos a prosperar. 
Apesar do nosso horizonte de conhecimento, apesar de conhecermos mais línguas, mais lugares, mais formas de pensamento e de comunicação do que os nossos predecessores, apesar de sermos abastados de comodidades e abençoados por tecnologias que nos servem melhor do que escravos, escapa-nos, ainda assim, o simples facto de que o Universo não torce pela nossa vitória e de que nada, absolutamente nada, nos é devido.
Esse facto foi-nos ocultado pela educação que recebemos. Tendo-nos sido ensinado de boa-fé que a história é um progresso, pareceu-nos lógico que, se os nossos pais tiveram um emprego de escritório e uma casa confortável, nós deveríamos ser importantes cientistas, ou empresários de sucesso, ou artistas revolucionários, ou celebridades de qualquer tipo a habitar casas maiores do que as dos
nossos pais, na companhia de belíssimos e excitantes parceiros, com os quais geraríamos filhos melhores do que nós.
E porque acreditámos nisso, o resultado da nossa educação é o fracasso.
Assim sendo, o que nos resta?
Muita coisa.
Resta-nos não aceitarmos ser representados por modelos pedagógicos que se proclamam bem-sucedidos. 
Resta-nos denunciar as tensões do ensino obrigatório e superior.
Resta-nos redefinir o que significa ter 20 ou 30 anos.
Resta-nos usar o nosso fácil acesso ao conhecimento para nos resignarmos ao facto de que o animal humano foi feito para perseguir a felicidade, não para a encontrar.
Resta-nos romantizar o passado, consciencializados de que não podemos fazer dele o presente.
Resta-nos colher do passado o que mais gostamos, e com isso construir um futuro.
Resta-nos assumir as nossas prolongadas juventudes e cometer os erros que os nossos pais tanto quiseram cometer.
Resta-nos fritar hambúrgueres, para depois abastecermos as prateleiras de um supermercado, para depois servirmos à mesa, para que, no fim do dia, não seja o nosso emprego que nos define e para que nos livremos da ideia de que uma carreira pode satisfazer as condições de uma vida consumada.
Restam-nos o Tinder e um extenso leque de oportunidades para conhecermos novas pessoas e para nos comprazermos de diferentes formas, evitando os custos dos compromissos vitalícios que, por tendência, falham, traumatizando quem vem ao mundo por causa de um amor juvenil.
Resta-nos perseguir a promiscuidade até que só o amor faça sentido.
Resta-nos experimentar os conceitos de família e de comunidade com o que temos à mão, seja os nossos amigos, os nossos pais ou um conjunto de estranhos com os quais comunicamos através de telemóveis.
Resta-nos representar artisticamente os nossos tempos, trazendo ao mundo os seus novos clássicos do cinema, da literatura, do teatro ou da música, sem o medo de usarmos a nossa linguagem e as paisagens que nos circundam.
Resta-nos afirmar o caos e a beleza dos nossos tempos, não esquecendo, sobretudo, a beleza.
Resta-nos estar atentos aos nossos festivais e pequenas festas, que superam qualquer Woodstock em expressão artística e liberdades – poucos foram os que se sentiram num epicentro cultural quando o
Jimi Hendrix subiu a um palco de madeira para tocar o hino americano; a maioria dos festivaleiros que a isso assistiu estava pedrada com ácidos e a pensar no que fazer a seguir, tal como tu no último
Super Bock.
Resta-nos, sobretudo, apreciar as possibilidades do presente e não nos convencermos de que o passado é intrinsecamente melhor porque já passou.
E resta-nos bem mais do que isto.
Uma vez, por volta da meia-noite, a Rua Cor-de-Rosa revelou-se-me a última grande consequência da nossa história. Enquanto a percorria com os meus amigos, passando uma ganza de trás para a frente,
despreocupadamente, contemplando as filas para entrar nos sítios onde ritmos se misturam com gritos, dei-me conta de que a minha Lisboa não é a mesma que a dos meus pais.
A minha Lisboa está repleta de internacionalismo, de contrastes sonoros e visuais, e de uma promíscua variedade de possibilidades.
Os brandos costumes ficaram para trás. E depois de a Rua Cor-de-Rosa ter ficado também ela para trás, de termos cortado à direita, de frente para o Cais, de termos entrado na 24 de Julho em busca do meu carro, que ficou em Santos por causa da falta de lugares, e de me ter dado conta de que a nossa conversa se tinha prolongado por mais de um quilómetro, tendo-se centrando na indecisão entre irmos ao Lux, a um clube de sexo nos Anjos ou para casa fumar mais umas e ver o que acontece, apercebi-me de que o nosso maior problema é escolher.
Ninguém nos preparou para as consequências destas escolhas.
A vida para a qual nos educaram não existe.

André Fontes

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