Não foi absinto, foi vinho da Madeira

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Ontem, falou-se de Fernando Pessoa, na mais velha livraria do mundo, a Bertrand do Chiado. Estão aqui as fotos do acontecimento, com o editor  e os apresentadores, Eugénia de Vasconcellos, Júlio Resende e Jorge Barreto Xavier. Falava-se de absinto, mas bebeu-se vinho da Madeira. Ficam aqui algumas fotos e o texto final, que Jorge Barreto Xavier escreveu e leu em grande estilos.

A propósito de absinto, ópio, tabaco ou outros fumos em Fernando Pessoa

Caro Manuel, Cara Eugénia, Caro Júlio, Caras e Caros Convidados,

Boa tarde,

As minhas primeiras palavras na apresentação deste livro, são para pedir, àqueles e àquelas que, porventura, estranhem a minha presença para falar de absinto, ópio, tabaco, ou outros fumos em Fernando Pessoa, que não me culpem. Para ter culpa é preciso ser responsável, e eu, irresponsavelmente, aceitei participar nesta conversa.

O culpado é o Manuel S. Fonseca, que me convidou,  mas creio que também o Bernardo Soares, o Álvaro de Campos, o Ricardo Reis, e, claro, o Fernando Pessoa, que gerou o Bernardo, o Álvaro e o Ricardo. Os culpados, são, pois, talvez os cinco, que, creio, em conluio, deram à luz os textos que aqui nos juntam.

Claro que não tenho a certeza desta ordem das coisas. Pode bem ser que os culpados sejam as palavras que geraram o Bernardo, o Álvaro, o Ricardo, que deram à luz o Fernando, que, por sua vez, escreveu um texto chamado Manuel S. Fonseca. De facto, falando da ordem das coisas, nada aqui nos garante que o Manuel não seja um texto literário e que o Bernardo, o Álvaro, o Ricardo,  ou o Fernando, sejam, pelo menos, um deles, o pai.

Olhando para o Manuel, não teremos, pelo menos, a leve suspeita, de que ele é um filho da literatura? O Manuel não será, afinal, uma singular forma de metáfora?…Aliás, não seremos, cada um de nós, criações de escritores mais ou menos bem sucedidos? Fica lançada a dúvida.

Nas coisas que precisam de ordem, reconhecer uma sequência pode ser o resultado de um equívoco.

Habitualmente, quando falamos de ordem, vimos todos ao engano.

Eu, por exemplo, ignoro a verdadeira ordem de razões do convite para estar aqui, hoje: terá sido uma lembrança do Bernardo, no seu tédio?; um erro de casting provocado pelo nervosismo do Álvaro?; uma decisão metódica do Ricardo?; uma divagação alcoólica  do Fernando?; um impulso excêntrico do Manuel?

Pode bem ser que o convite não tenha sido provocado por nenhum destes motivos. Há, até, a séria possibilidade de estar eu aqui, de nós estarmos aqui, essencialmente, por causa de uma conjunção cósmica favorável.

Tomando essa hipótese em consideração, antes de vir, fui informar-me sobre o mapa astral para o dia de hoje. Depois de muito afanosamente procurar a mais rigorosa das análises, rejeitando, pelo caminho, propostas menos sérias, encontrei o site da astróloga Vanessa Tuleski, consultável em www.constelar.com.br . A Vanessa, entre outras revelações e recomendações para esta semana, diz o seguinte:

“(…) Até vinte de Abril, estará no ar um aspecto que aciona a boa vontade em ações conjuntas: Marte em sextil com Neptuno. (…) Vênus, transitando no estável e afectuoso Touro, estará fazendo ótimos aspectos, com que possamos apoiar quem gostamos e sermos apoiados. É tempo de dedicar um pouco de atenção a quem é importante para nós, e a partir de algo concreto, como Touro gosta: um abraço, beijo, tempo, um almoço, etc. Ou, no caso dos encontros amorosos, uma lingerie ou massagem sensual e um pouco de espaço para o lúdico. Vênus em bom aspecto com Neptuno ajudará a trazer doses de sonho, delicadeza e romantismo, em uma semana interessante para solteiros e comprometidos. Atenção, porém, a partir do final de semana, para a oposição entre Vênus e Júpiter, que tende a aumentar os gastos, excessos e preguiça. Talvez vá ser um pouco mais difícil prosseguir na dieta ou manter o bolso quieto, com mais tentações surgindo.”

Agradeço publicamente os preciosos esclarecimentos e as sensatas recomendações da Vanessa, e partilho convosco estes tesouros sapienciais, embora receie pela carteira, pensando na dieta e ansiando pela massagem. Em qualquer dos casos, não sei se conseguirei manter o bolso quieto.

Será por causa da conjugação dos astros que, cada um de nós, gravita aqui hoje em torno do absinto, do ópio, do tabaco e de outros fumos?… Nós, que somos partículas carbónicas geradas pela explosão das estrelas?

Ou talvez nem sequer estejamos, verdadeiramente, aqui, e esta conversa, seja só o sonho de um deus de quem não sabemos o nome.

No que me respeita, a atração gravitacional por aleivosias não precisa de um entendimento de Vénus com o Touro.

E é-me difícil encontrar culpados, entre o Bernardo, o Álvaro, o Júpiter, o Ricardo, o Touro, o Manuel, a Vénus e o Fernando. O Fernando, que é, por sinal, Gémeos regido por Mercúrio.

Difícil encontrar culpados, apesar de saber que a culpa da minha presença, não é minha, mas de algum dos citados deuses, escritores, editores ou seus heterónimos.

Aliás, a trama da culpa adensa-se, se percebermos que Almeida Garrett, esse portuense-lisboeta meio irlandês, deu nome, por ordem de um certo presidente de câmara de Lisboa chamado Rosa Araújo, à rua em se encontra a livraria onde, eventualmente, nos achamos.

Garret, esse mesmo que hoje repousa no Panteão Nacional e não consta que tenha jantado no WebSummit com Paddy Cosgrave, outro irlandês apanhado na rede alimentar lusitana.

Pergunto-vos, com uma dúvida que também é minha: será que há uma conspiração entre o fantasma anglófilo de Pessoa, que uma mesa de pé-de-galo em Durban convocou, com a costela irlandesa de Garrett, intermediada por uma costeleta comida por Paddy Cosgrave no Panteão Nacional, para que hoje, aqui, anestesiados pelos vapores do absinto, inalando tabaco e outros fumos, talvez opiáceos, nos sintamos, alucinadamente confortáveis no elogio da literatura?

Será que fomos colonizados por aedos saxões, anglos, normandos, germanos, alamanos, godos, ostrogodos e visigodos, irradiando subliminares odes bálticas em letra de fôrma portuguesa, através dos Garrets e dos Pessoas?

Quem é afinal o culpado? Ou serão todos culpados, homens do Norte e de outras latitudes, dos doces langores, que, por vezes, se libertam das folhas de papel dos livros, inaladas como um qualquer álcool, alucinogénio, ou fumo, indiscriminadamente?

Não recomendo a criminalização dos prazeres provocados pelo vício da literatura.

Mas continuo à procura dos culpados do meu achaque e vosso desgosto presumido, que representa esta fala desconexa.

Uma fala provocada, quiçá, pelo Bernardo,  a Vénus,  o Álvaro, o Touro, o  Ricardo,  o Júpiter,  o Manuel, o Mercúrio, o Fernando, o Paddy, o Garret, os Gémeos, ou mesmo, pelo José Gregório da Rosa Araújo, que não sendo um literato, possui o mérito de ter servido no estabelecimento de seus pais, a famosa Confeitaria Cócó, aqui bem perto, na Rua de São Nicolau, nos idos de Oitocentos.

Mas eu tenho a vaga suspeita de que o Manuel é uma emanação de Mercúrio; o Bernardo, dos Gémeos; o Álvaro,  do Fernando; e os dois, de Júpiter; o Paddy de Garrett; e, que todos juntos, na Confeitaria Cócó, a convite de José Gregório, gizaram um plano para nos intoxicar de uma forma viciante e viciosa, hoje e aqui.

Porque os vícios, esses milhões de animais tentadores, têm destas coisas: viciam. E viciam viciando viciosamente.

Não há uma ordem certa nos vícios. Ao contrário das coisas que precisam de ordenha, os vícios são desordenados e desordenam.

Acima de tudo, os vícios são uma espécie em vias de expansão.

O aumento da população mundial traz consigo um mercado  crescente para todos os tipos de vícios: pequeninos, grandes, evidentes, envergonhados, consentidos, proibidos, gloriosos, ridículos, bonitos, feios.

Os vícios, para além de serem uma espécie em vias de expansão, são uma espécie sujeita a todos os tipos de exploração.

Trabalham o dia inteiro, e, frequentemente, toda a noite. Não estão sindicalizados. Não têm fins de semana de descanso. Não têm segurança social nem direito à reforma.

Os vícios são altamente discriminados, menorizados, escondidos, e há mesmo muitas casas nas quais não podem entrar de cabeça erguida, pela porta da frente –  só os deixam entrar, pela calada, através da porta dos fundos. Não há vício que aguente.

Culpa-se os vícios de tudo, mas os coitadinhos não têm culpa de nada. Os vícios são, como talvez dissesse Herberto, a mais alta criação dos viciados.

Os viciados são os malandrinhos que se escondem dentro de cada um de nós, a querer mais e mais. Roem as unhas sempre que podem, abanam irritantemente o pé, tamborilam na mesa com os dedos e sem dizer água-vai, agarram-se que nem perdidos às franjas do quotidiano.

Os malandrinhos dos viciados são transformacionistas prazenteiros.

Escondem-se entre as golas das camisolas e as peúgas, tanto faz, pois ao fim de alguns dias, estão tão entranhados na pele que nem se consegue distingui-los, quando vamos tomar o duche matinal e nos olhamos ao espelho.

Os viciados são a parte simpática dos animais racionais. Os viciados são os chamadores de todos os tipos de vícios. Não fossem os malandrinhos transformacionistas prazenteiros e os vícios não seriam uma espécie sujeita a tamanha expansão e exploração.

Não são os vícios que tentam o género humano. É o género humano que escraviza os vícios.

Eu, pessoalmente, tenho pena deles.

Como creio que todos e todas as presentes, de uma maneira ou de outra, têm os seus vícios, e como acredito que nem sempre os tratam com a dignidade que estes merecem, aproveito esta oportunidade para vos falar da recentemente criada Liga de Proteção dos Vícios em Perigo – a LPVP.

A LPVP envidará todos os esforços ao seu alcance para dar aos vícios o que eles merecem: uma semana inglesa, subsídio de risco, pausa para almoço, assistência na doença e reforma. Para os vícios nocturnos, pediremos o pagamento de horas extraordinárias. Horas extraordinárias para todos os vícios, mesmo para os vícios ordinários.

Para o absinto, pediremos garrafas de cristal.

Para o ópio, cachimbos em prata.

Para o tabaco, caixas lacadas.

Não deixaremos de cobrir cada vício com a devida e justa proteção.

Os vícios são os melhores amigos dos homens e, atrever-me-ia a dizer, das mulheres e de todos e todas que não encaixam em tão estreitas e quadradas definições.

Eu, viciado, me confesso junto de vós. Adito prazenteiro disfarçado, exploro diversos vícios ao mesmo tempo, sem hora nem medida. A LPVP vai ajudar-me a moderar tão intensiva e injusta exploração.

O vício de falar sem me calar vem de longe. Mas, como referi, a culpa disso – pelo menos  no dia de hoje – é do Bernardo,  da Vénus,  do Álvaro, do Touro,  do Ricardo,  do Júpiter,  do Manuel, de Mercúrio, do Fernando, do Paddy, do Garret, dos Gémeos ou mesmo do José Gregório da Rosa Araújo.

São para eles estas palavras. Sem os altos deuses, escritores, editores e heterónimos, aditos do vício da literatura, estaria em casa, viciado noutra coisa qualquer. Sem eles, esta tarde seria mais cinzenta. Culpo-os pois, por um fim de tarde bem passado. Malditos sejam!

Sobre os vícios de Pessoa…coitadinhos! Vícios pequeninos e de idade avançada, a precisar de reforma, de quem tome conta deles. Vícios que encontraram, quando jovens, o Bernardo, o Álvaro, o Ricardo, e uma mão cheia de outras emanações.

Não culparei os vícios de Pessoa, no máximo culparei Pessoa. Será que ele cuidou bem dos seus vícios?

E quanto a vós, viciados em literatura, não vos desejo nenhuma cura.

Peço-vos só que protejam com cuidado os vossos vícios e não deixem de os alimentar convenientemente, como recomenda a comissão instaladora da LPVP, na introdução do seu comunicado número 69, datado de sete do sete de 2017.

E façam favor de culpar quem tiverem de culpar por esta apresentação. A mim, não, eu sou um simples viciado prazenteiro à procura de consumir mais e mais palavras, caras, baratas, bonitas, feias, bem postas, desalinhadas, não interessa… desde que satisfaçam a minha ânsia, a minha fome, por um prato de sopa de letras, com todos.

Obrigado!

Jorge Barreto Xavier

Lisboa, 17.04..18

fotos de Neusa Ayres

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