O genocídio velado

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Comecemos por onde se tem de começar: a escravatura de seres humanos, que toda a humanidade praticou durante séculos e séculos, é aos nossos olhos, no século XXI, um crime contra a humanidade. O primeiro ser humano a qualificá-lo assim foi Victor Schoelcher, francês, nascido em Paris. Fê-lo no século XIX, em que viveu, num ambiente abolicionista que o Ocidente teve a iniciativa de instituir e propagar.

Vem isto a propósito de um livro polémico, que a Guerra & Paz acaba de publicar, da autoria do historiador João Pedro Marques. O livro, Escravatura, Perguntas e Respostas”, tem vindo a suscitar naturais reacções, mas temo que a maioria das reacções, epidérmicas, sejam pouco legítimas e tenho, como editor, de as contestar.

Reforçando a tese central do livro, a de que a escravatura de africanos era praticada antes da chegada do homem branco e em grande escala pelos árabes, com a conivência e envolvimento dos reinos africanos, o filósofo Pascal Bruckner acaba de publicar um texto sobre um livro e um historiador que uma certa elite de historiadores silenciou, numa estratégia de camuflagem cujos contornos ideológicos são fáceis de perceber.

O livro intitula-se “O genocídio velado” e é da autoria de Tidiane N’ Diaye, um escritor franco-senegalês, investigador, antropólogo e economista. Nesse livro, Tidiane N’ Diaye sustenta as seguintes teses:

a)             O tráfico arábio-muçulmano de escravos foi o mais devastador que a África sofreu;

b)            Arrancou de África cerca de 17 milhões de africanos;

c)             Começou no século VII, oito séculos séculos antes do tráfico de escravos transatlântico, e só terminou no século XX;

d)            Enquanto do tráfico transatlântico há 70 milhões de descendentes na América Latina e nos Estados Unidos, restam apenas minorias africanas nos países muçulmanos para onde os escravos foram levados, o que significa que a sua escravidão foi acompanhada de extermínio, no que a castração dos cativos teve um papel relevante.

O que Pascal Bruckner vem dizer é que este livro de um africano (Tidiane N’ Diaye é, aliás, muçulmano), não podendo ser atacado como o foram alguns historiadores brancos, depressa acusados de reaccionarismo ou racismo, foi silenciado, em particular por investigadores africanos e afro-americanos, como o próprio N’ Diaye denunciou.

Os treze séculos de escravatura arábio-muçulmana fundaram-se na ideia de que a “raça negra se parece mais aos animais selvagens do que aos seres humanos… por vezes devoram-se uns aos outros” (Ibn Khaldoun, cronista do século XIV) e foram séculos em que os árabes, caçadores de homens, como diz N’ Diaye “transformaram em verdadeiros infernos regiões inteiras”.

Tidiane N’ Diaye conclui: “Se bem que não existam graus para o horror, nem monopólio da crueldade, pode sustentar-se sem risco de nos enganarmos que o comércio negreiro e as expedições guerreiras conduzidas pelos Árabes muçulmanos foram, para a África negra, e ao longo dos séculos, muito mais devastadoras do que o tráfico transatlântico.”

Os países ocidentais, e Portugal e as caravelas e os marinheiros portugueses, estiveram envolvidos num crime contra a humanidade durante quatro séculos. Fizeram-no em conluio com reinos africanos e com africanos. É preciso não esquecer esta verdade histórica, como é também preciso dizer-se, e cito Pascal Bruckner, que “O Ocidente não inventou a escravatura, inventou a abolição”.

A questão chave é esta e é essa também a pergunta de Tidiane N’ Diaye: a que se deve o silêncio face ao tráfico arábio-muçulmano, o tráfico que mais africanos roubou a África, o que mais séculos durou sem que um movimento abolicionista fosse visível no seio da cultura muçulmana?

Manuel S. Fonseca

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