O Natal gosta de ler: As Meninas, de Agustina

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Este livro, As Meninas, de Agustina Bessa-Luís, é um livro para ler depois da ceia de Natal. Uma Missa do Galo, um «leão que ruge entre as saias das meninas e levanta-se nas patas traseiras ameaçando o macaco que parece executar uns passos de dança».  Deixo-vos aqui um excerto, que fui roubar às primeiras páginas. Se o comprarem, saibam que não estão bem a comprar um livro, estão a comprar a beleza pura, dita pela pena de uma mulher que sabia pintar de ironia a sua escrita.

As Meninas
Agustina Bessa-Luís

«Ouvi a Paula Rego ao telefone e a voz dela não me agradou. Tinha o mesmo tom enervante e desprendido da Vieira da Silva quando falava das coisas de Portugal. Uma mistura de indiferença e calorosa maneira de receber, como se recebe uma visita, quase uma estranha. Eu perguntei-lhe se queria pintar duas grandes telas, ou quatro, para o salão nobre do Teatro D. Maria onde eu era directora, e Paula respondeu-me com um prazer que tinha que ver com a sua glória nascente ou já desfrutada em pleno. Um prazer de recusar uma encomenda, por tentadora que ela fosse. Indicou-me outra pessoa para pintar os quadros, e isso impediu que eu quisesse vencer toda a série de obstáculos que se levantavam à minha frente: não tanto a peregrinação de porta a porta, em vista dos patrocinadores, mas sobretudo a mesquinha e surda altercação que se forma em volta dos sonhos de alguém. Eu desisti. Era em 1992, e Paula Rego gozava duma celebridade que a exposição A Menina e o Cão, de 1987, na Edward Totah Gallery, no West End, lhe granjeara. Tinha aceitado o convite para primeira artista associada da National Gallery, e eu chegava tarde a essa vida audaciosa e simples com a qual me aparentava. Era como uma pessoa de família que se tinha esquecido de mandar notícias durante um itinerário cheio de peripécias que resumiam um gigantesco trabalho. Quando pego na pena para escrever sobre Paula Rego, faço-o como se reatasse um antigo encontro. Desde a infância. 

Lentamente, desdobro as pregas dessa vida de menina e em muitos detalhes eu estou lá. Na solidão da quinta, na fantástica e humilde marcha doméstica a que não faltam clarins de vozes, bater de portas, tambores de chuvas e fervuras, sangue e água nas pias, os olhos moribundos das galinhas depenadas com água quente. A brutalidade nem sequer envergonhada dos predadores, os comedores de jantares rituais, o afecto repartido entre as crianças, os sabores, os animais. Um mundo perverso e encantado que as histórias de fadas e princesas trazem no ventre e que vão fazer a lauta obra dum artista, se ela se escapa pelas malhas da casa materna e se evade para o mundo. O mundo artista é um prolongamento da infância, dos seus medos e dos seus gritos penetrantes como o que os pavões soltam num parque deserto. Um parque arruinado, não um jardim francês, geométrico e letal. 

As Meninas de todas as idades mostram-se na obra de Paula Rego. Têm o rosto das criadas que andavam pela casa da Ericeira e que tinham duras mãos capazes de assassinarem alguém. As Meninas têm essa consciência de assassinas, carregada como um brinquedo desde as portas da infância. Mesmo quando voam, em sonhos de vagos desejos ainda informes, parecem espreguiçar-se de puro prazer onírico em que cabem as loucuras mais dinâmicas, as vertigens mais insidiosas, a pureza mais cruel.»

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