Sou o editor deste livro de Onofre dos Santos, versão mais acrescentada do que revista, da edição que publicou há uns bons anos, noutra editora. Escrevi, pelas razões que abaixo se elencam e tornam claras, esta nota introdutória. Amanhã, 2.ª feira, dia 11 de Novembro, na Casa de Angola, o meu autor e eu conversamos, debaixo da mulemba, à volta deste livro.
Um quase prefácio
Estivemos, nesses dias da dipanda, de lados opostos da barricada. Eu estive do lado da independência que Agostinho Neto proclamou em Luanda. O autor deste livro, Onofre dos Santos, esteve do lado da independência que Holden Roberto e Jonas Savimbi proclamaram, no Ambriz e no Huambo.
E estivemos, Onofre e eu, quase ao alcance da mão. Os meus 22 anos, revolucionários, anarco-marxistas, tinham vindo a fugir do Lobito e refugiaram-se, nessa noite de 11 de Novembro de 1975, sob a asa das FAPLA, o exército do MPLA que os cubanos, enfim visíveis, enquadravam. No Sumbe, dois passos a sul do Cuanza.
No Ambriz, uns bons passos a norte do Cuanza, Onofre, 34 anos, chegou de avião, na madrugada tropical, a outra independência, depois de já ter sido arriada e dobrada a bandeira da pátria lusíada cansada de guerra. O que teríamos dito um ao outro se nos encontrássemos? Ter-nos-íamos tratado por tu? Teríamos sobrevivido à pergunta fatal: «És camarada ou irmão?»
A leitura deste Os Meus Dias da Independência exaltou-me e afligiu-me. Ler cada palavra, cada evocação de Onofre dos Santos, rasga ao meio a minha memória e a identidade que essa memória me confere. O que eu julgava ser a realidade daqueles anos, dos anos da Independência, duplica-se numa realidade paralela que me assombra. Explico-me. No dia 10 de Novembro de 1975, comecei, com os meus camaradas, a preparar a trouxa para fugirmos do Lobito, cidade onde eu dava aulas, a par da missão militante a que metera os meus fracos, mas então tão jovens e idealistas, ombros revolucionários. Era impossível resistir ao exército inimigo, e a ordem era retirar para o Sumbe, a antiga cidade de Novo Redondo.
Foi o que fizemos no dia que ia ser o da independência. Depois de deixarmos as mulheres e crianças de alguns de nós no Sumbe, já não sei o quê, uma réstia de loucura, fez-nos (éramos quatro) voltar atrás. Voltámos ao Lobito, as nossas metralhadoras che guevarianas ao ombro, e fomos almoçar à pensão da Dona Rosa, ao lado do imenso porto do Lobito, ao lado dos seus gigantescos e silenciosos guindastes, e comer de sobremesa os mais doces sonhos que já alguém comeu no mundo, última pincelada doméstica e colonial num mundo em vertiginosa e turbulenta mudança. Depois, uma lágrima da velhinha Dona Rosa à despedida, zarpámos para Benguela e fomos tentar convencer o comandante Kassanje, uma espécie de James Dean negro da revolução, a recuar: «Camarada, é impossível resistires, o comando das FAPLA já está no Sumbe e tu aqui só tens candengues e kotas com armas de pau!» E Kassanje, militância febril, só nos falava do regresso à mata e das teorias da resistência popular prolongada. Adivinharia a morte que o colheria nos dias seguintes?
Voltámos, mais a galope do que a trote, para o Sumbe. Na estrada, os cubanos montavam o primeiro monacaxito que os meus olhos viram, essa boca-de-fogo, míssil terra-terra, que tinha de ser capaz de atrasar o implacável avanço inimigo. Nesse 11 de Novembro, no Sumbe, atacados pelo Sul e ansiosos quanto ao que se passaria a norte, em Kifangondo, a noite africana veio, brilhos de luar a esquindivar no escuro Atlântico, as balas tracejantes a fazer inveja aos remotos e anacrónicos cometas, porque foi a tiros que festejámos, nesse tempo em que tudo se festejava a tiro.
Nesse mesmo dia, já disse, Onofre, vindo de Kinshasa, aterrava no Ambriz para fazer outra independência, e a trama do romance de esperanças, logros e sobressaltos que foi o relacionamento de Holden Roberto, Jonas Savimbi e Daniel Chipenda há-de levá-lo depressa ao Huambo e, depois, a 16 de Dezembro de 1975, ao Lobito e a Benguela.
Um mês depois de eu ter saído do Lobito, deixando para trás os dois anos mais romanticamente revolucionários da minha vida, Onofre dos Santos percorria as mesmas ruas, cheirava os mesmos aromas, encantava-se com as mesmas paisagens, banhava-se nas mesmas águas. A guerra pode, afinal, ser um surpreendente denominador comum.
E eis o que me aflige. Quando deixei o Lobito e Benguela, deixei cidades desertas. Para os meus 22 anos, e tendo-as eu abandonado, era como se objectivamente essas cidades deixassem de existir, como se a realidade congelasse e não fosse vida a vida que outros lá pudessem viver. Quem tenha lido o maravilhoso conto Rip van Winkle pode imaginar o que quero dizer. Esse herói, criado por Washington Irving, foi floresta dentro, encostou-se a uma árvore e dormiu. Acordou e, sem que soubesse como, tinham passado 20 anos, uma revolução e já a América era independente. Calculem a tremenda surpresa que o livro de Onofre dos Santos me ofereceu. Como um anti-Washington Irving, Onofre revelou‑me a vida, a prodigiosa vida que brotou da e na cidade depois de mim.
Que ninguém diga nunca: «Depois de mim, o dilúvio.»
Com uma encantada inveja, segui, parágrafo a parágrafo, os passos de Onofre dos Santos. Os meus olhos, agarrados aos pés dele, voltaram à Restinga do Lobito que uma eroticíssima kalunga paciente e acrisoladamente teceu; os meus olhos foram até ao Palácio do Governador, em Benguela; os meus olhos voltaram a entrar, deliciados, no Hotel Terminus, esse brinco de charme e tradição debruçado sobre o nocturno raio verde do mar do Lobito; mas, sobretudo – como é que o Onofre se atreveu! –, os meus olhos foram dançar na pequena pista do Calema, essa buáte meia suspeita, que não te digo nem te conto.
Mas Os Meus Dias da Independência não precisa dessa coincidência, nem das minhas memórias de soldado raso da dipanda para ser um livro precioso, necessário e único. Mais do que um privilegiado espectador, Onofre dos Santos foi, com os seus 34 anos, um actor de primeira linha da independência de Angola. Ministro da Justiça do governo que a FNLA e a UNITA formaram, Onofre roçou ombros com figuras decisivas, como Holden, Savimbi, Chipenda, Hendrick Vaal Neto, José N’Dele, Tony da Costa Fernandes. Onofre dos Santos desenhou esperanças no atribulado governo a que pertenceu e viveu ameaças e situações extremas, a sombra da morte mesmo à porta. Este livro é o rolo de pergaminho que Onofre desenrola perante os atónitos olhos da História. Estão aqui as letras fundadoras da parte que falta para que se faça História, completa, da história da independência de Angola.
Ser editor desta obra e poder escrever este texto que o meu autor me sugeriu, despertou em mim uma antiga e ferida emoção. Este livro é a grande tela em que se retrata e pinta a realidade em que mergulhou e se afogou o ideal de uma geração. Cada um à sua maneira, Onofre dos Santos e eu, vivemos esse ideal.