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O que é um erro falso de português?
Marco Neves

Texto baseado na apresentação feita pelo autor no dia do lançamento do Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.

 

Um erro falso é uma qualquer expressão ou palavra da nossa língua que teve o azar de apanhar alguém num dia mau. No fundo, um erro falso é um pedaço de língua vítima de embirração — e, às vezes, embirração compulsiva.

Enfim, embirrações todos temos e todo o português tem o direito alienável de não gostar desta ou daquela palavra — não devemos é confundir tais legítimas e saudáveis embirrações com a gramática da língua…

Às vezes, o erro falso nem é uma palavra. É um prefixo, um mero prefixo…

Olhemos para três belos vocábulos do português:

  • «desfazer»;
  • «desinquietar»;
  • «desfalecer».

O extraordinário prefixo «des» tem, nestas palavras, três significados diferentes.

Em «desfazer», o prefixo «des» tem o significado mais comum: «desfazer» é o contrário de «fazer». Por essa língua fora, há muitas palavras em que o prefixo tem esse significado: «desobedecer», «desligar»…

Mas, se olharmos para «desinquietar», vemos que nesse caso o «des» significa «inquietar», talvez com um pouco mais de força — e é um facto que é este o significado que lhe damos nesta palavra.

Isto arrelia algumas pessoas. Não pode ser! O «des» marca o contrário da palavra! «Desinquietar» devia querer dizer «acalmar»! E, no entanto, não quer.

Pois chegamos ao «desfalecer» e a coisa descamba: aqui, o «des» não significa o contrário — «desfalecer» não é o contrário de «falecer» — mas também não intensifica. «Desfalecer» quer dizer algo como «parece que falece, mas não falece»… Ui! Este prefixo é uma animação.

O «des» significa coisas diferentes conforme a palavra em que aparece.

Um horror, não haja dúvida.

Ora, na verdade, estamos perante um fenómeno banalíssimo de todas as línguas: há palavras e pedaços de palavra que têm vários significados.

Pois, a partir deste facto banalíssimo, surgem alguns discursos inflamados: «desinquietar» não pode ser! «Desfalecer» é erro! Quem usar estas palavras não sabe pensar! A língua está a morrer!

Pois digo agora eu: acusar de ilógico o uso de «des» com sentidos diferentes é tão absurdo como afirmar, com ar muito inteligente, que o meu filho, quando diz que se vai sentar num banco, está a ser ilógico — com o argumento de que banco também pode querer dizer agência bancária. Esta necessidade de encontrar uma lógica superficial, muito limitada, no funcionamento da língua é, no fundo, uma demonstração de pensamento pouco rigoroso — ou, pelo menos, pouco realista — sobre a língua.

O português está cheio de repetições, redundâncias, palavras que significam o mesmo, vários significados numa só palavra — tudo numa floresta de pequenas subtilezas e, por vezes, faltas de sentido que são o sal da língua. As línguas são um fenómeno orgânico e natural (sim, natural: explico o que quero dizer com isto no livro). São — lembremo-nos — criadas por seres imperfeitos, que foram inventando palavras e criando regras, sem querer, pelos séculos fora. Não falamos uma língua de robots! E não falamos, acima de tudo, uma língua criada num qualquer Comité de Criação de Línguas Perfeitas, comité que decretaria o significado único, eterno e imutável da palavra «banco» e do prefixo «des».

Ah, não: falamos uma língua muito humana, ou seja, feita para seres inteligentes, com o coração a bater, às vezes com força, uma língua imperfeita, desarrumada, pronta para a literatura, para as conversas do dia-a-dia, para o riso e para o prazer. E também para as zangas e os gritos, claro está.

As palavras de pijama

Por vezes, o problema é outro. Há palavras que não são adequadas a certas situações. Todos sabemos que os palavrões fazem bem quando damos com o dedo do pé na porta, mas não são assim tão simpáticos numa sala de aula ou no parlamento.

Todas as palavras vêm com esta espécie de mapa de interdições. Não é dramático. É assim em todas as línguas.

Olhemos para certas palavras do registo popular.

Por exemplo:

  • «Destrocar»;
  • «Deslargar»;
  • «Desandar».

São palavras de um certo registo, com um determinado mapa. Não defendo que subamos ao palanque do Parlamento e comemos a dizer: «Espero que Sua Excelência deslargue este assunto!». Nada disso.

Agora, o problema é que há quem julgue serem estas palavras sinal de estupidez, por serem pouco lógicas ou erros de português. Não são: são tão lógicas como «desinquietar», «desfalecer» ou como todas as palavras com vários significados que existem em português. E são verbos realmente existentes na língua, que seguem as regras da conjugação verbal — e são usados pelos falantes…

Calhou apenas, pela lotaria do uso da língua pelos séculos fora, que «destrocar», «deslargar» e «desandar» fossem arrumadas no registo popular. Não digo que não venham a mudar de registo. Já aconteceu. Mas isso são questões que estão longe de problemas de lógica ou de gramática — e, acima de tudo, o uso destas palavras não é uma questão de inteligência!

Alguns dirão: se posso dizer «deslargar», quer dizer que vale tudo!

Não, não vale tudo! Não podemos dizer o que quisermos onde quisermos. Este dicionário passa grande parte do tempo a dizer isso mesmo. Tem avisos em várias entradas sobre as situações ou espaços onde as palavras são aceitáveis. Podemos concordar ou não com essas interdições, mas as coisas são como são.

E, não, não vale tudo. Há muitas formas de usar mal a língua. Basta pensar que se eu quiser usar «desinquietar» com o sentido de «acalmar» vou ter problemas.

Muito deste medo do «vale tudo» tem origem na dificuldade em lidar com palavras que são habituais na boca doutros falantes, mas não nos nossos círculos próximos. Julgamos que essa diferença equivale a erro ou ignorância da parte dos outros. Dou o exemplo do substantivo «comer», como na frase «O comer está na mesa.». É uma expressão típica do registo popular. Está errada? Não! Segue o mesmo padrão de «o saber», «o olhar» — são palavras que saltaram de categoria. Eram verbos, mas agora também são substantivos. «O comer» irrita muitas famílias? Sim. Mas a culpa não é da gramática.

Na língua, há registos diferentes, variação regional, social, individual. É um dos factos universais da linguagem humana. Temos de ser exigentes e tentar conhecer a língua sem cair em ideias simplistas. É também para isso que existe este livro.

A curiosidade da língua

Combater os erros falsos é, entre outras coisas, uma forma de combater o empobrecimento da língua. Como explico no livro, se um destes mitos começa a espalhar-se, a expressão pode mesmo ver-se arredada do discurso cuidado da língua. Por exemplo, «já agora». Há quem veja nesta expressão um erro. Se a ideia pegar (espero que não!), poderá começar a ser impossível usar tal expressão num texto cuidado. Apenas porque alguém olhou para «já agora» e encontrou ali qualquer coisa que não fazia sentido. Se deixarmos estes caprichos tomarem conta da língua, lá vão pelo cano as expressões idiomáticas ou as expressões populares…

Mas a motivação mais importante que me levou a escrever este livro é outra: a curiosidade. No fundo, eu aproveito estes momentos em que alguém embirrou com uma característica da língua para obrigar o leitor a olhar para a português com olhos de espanto (ou talvez melhor dizendo: ouvidos de espanto).

No fundo, estou a aproveitar-me dos erros falsos para criar a sensação de estranhamento — um conceito que vem da literatura e uso aqui para olhar para a língua.

É uma estratégia para nos obrigar a reparar no português — pelo caminho, ficamos um pouco mais abertos a tudo o que a língua nos oferece e, acredito, mais preparados para usar toda a gama de expressões que temos ao dispor. Ficamos a conhecer melhor a língua, com a mente aberta e a necessária dose de rigor.

Vejamos, apenas como exemplo, alguns dos erros falsos de que se ocupa o dicionário.

«Tirar impressões digitais»

O verbo «tirar» tem, na nossa língua, muitos sentidos. Quando digo «tirar uma fotografia», «tirar uma impressão digital», «tirar uma fotocópia», estou a usar o verbo com um sentido perfeitamente avalizado pelos falantes — falo da criação de uma imagem de determinado objecto ou paisagem.

Isto é assim na vida real da língua — mas há quem ache que este verbo só pode ter um significado: o sentido de «retirar» ou «remover». Logo, «tirar uma fotografia» não faria sentido. E, no entanto, na cabeça dos falantes, faz… Será milagre?

É preciso imaginar uma situação particularmente abstrusa para que alguém oiça a frase «tens de tirar as impressões digitais» e imagine que a proposta implica cortar as pontas dos dedos. Da mesma forma, «tirar uma fotografia» tem um significado transparente.

Alguns dirão: ah, mas temos de variar o vocabulário! E claro que temos. Mas não é eliminando significados aos verbos que vamos conseguir um vocabulário mais rico. Antes pelo contrário…

«Fazer a barba»

Descobri, há uns tempos, que alguns recrutas andam por esses quartéis a fazer flexões porque tiveram o azar de dizer «fazer a barba». Segundo alguma mente quadrada que um dia apareceu por lá, não pode ser. A barba não se faz, corta-se. Logo, o correcto seria «desfazer a barba».

A língua não é usada às secas, num laboratório, mas na vida real, onde alguém que acaba de se levantar e tem a mãe a dizer: «faz a cama!» não se põe a martelar e a construir uma cama nova. Nós não somos assim tão burros!

E o verbo «fazer» não é assim tão limitado… Significa «construir», mas também uma série de outras coisas. O que pensarão estas pessoas da expressão «fazer amor»?

Um homem que faz a barba, não está a construir uma barba. Está a fazer alguma coisa, de facto: a cortar a sua barba cortadinha e pronta para o dia… Se a minha mulher me perguntar, pela manhã, «o que estás a fazer?» e eu disser «a barba», onde está o erro?

(Alguns gritam logo: ah, mas eu digo «cortar» para evitar ambiguidades! Ora, eu também digo «cortar», de vez em quando. Mas para evitar ambiguidades? Em que universo paralelo vivem estas pessoas, que acham possível imaginar um homem a construir uma barba todas as manhãs?)

«Já agora»

Esta é uma expressão que alguém condenou porque «já» e «agora» querem dizer a mesma coisa. E é verdade que sim. Mas será que as línguas não têm expressões idiomáticas? Uma expressão nem sempre tem um sentido deduzível olhando para as palavras que a compõem.

«Já agora» é uma expressão idiomática — não quer dizer nem «já» nem «agora».

A palavra «já», aliás, tem um uso variado que me deixa espantado:

  • « que estás aqui…»
  • «Quero isso
  • « cá cantas…»
  • « me dizias a verdade…»
  • «Já agora, diz-me as horas.»
  • «Já agora! Era o que faltava!»

E podíamos continuar…

Isto é uma riqueza, é saboroso, é a nossa língua.

«Beijinhos grandes»

Esta é uma expressão da língua que vi condenada quando o livro já estava quase fechado. A Inês Figueiras, que reviu o Dicionário, pode confirmar: foi mesmo no último momento que incluímos esta entrada.

E é um excelente exemplo de erro falso! É uma tentação dizer: «Ah, não, se são beijinhos, não podem ser grandes.» Pronto, já apanhei o outro em falso… Já ganhei o dia!…

Ora, fico um pouco preocupado com quem se deixa enganar por esta peculiar matemática dos beijinhos. Na verdade, o sufixo «-inho» nem sempre significa «pequeno». Além disso, ninguém devia andar a medir os beijinhos para ver se estão em conformidade com o tamanho indicado pela fórmula que usamos para os dizer…

Mas nem é preciso ir por aí: mesmo ilógica (e não é!), estamos perante uma expressão idiomática!

Enfim, penso eu: o que dirão quando eu olho para o meu filho e digo: «ah, o meu filhinho está tão grande!»… Então e se eu disser «está grandinho…»? Misturo o diminutivo com a palavra «grande»! Mereço uma reguadazinha? Ou uma reguada mesmo a sério, sem -inho nem carinho?

O mais curioso foi um comentário que ouvi sobre a expressão. Alguém me disse: «É erro, claro! Então, não há-de ser? Se é uma expressão que só as mulheres dizem…» Fiz uma careta de vergonha alheia… Pelos vistos, se uma expressão é exclusiva do sexo feminino, é erro. Acho que o tal homem não merece beijinhos — nem grandes nem pequeninos.

«Queria ou quer?»

O pensamento literalista que critico no livro culmina na famosa piada de algibeira: «queria ou quer?». Como o verbo está no pretérito, teria de ter um significado relacionado com o passado…

Não, neste caso estamos a usar aquilo que muitos chamam «imperfeito de cortesia». É apenas uma forma de boa educação! Erro só na cabeça dos linguistas instantâneos que por aí circulam.

Como mostro no livro, os tempos verbais em português (e noutras línguas) tem um uso muito mais subtil e rico do que pensamos à primeira vista. Basta olhar para o pretérito perfeito composto do indicativo. Ou seja, o tempo verbal da frase «Eu tenho falado com ele.». Quer dizer algo tão preciso como isto: «falei com ele várias vezes nos últimos tempos».

O próprio presente do indicativo serve para muita coisa — e raramente se refere ao momento presente. Se eu disser «eu falo com ele», estou a referir-me ao futuro. Se eu disser «eu falo grego», estou a dizer alguma coisa que eu sei fazer, mas não quer dizer que a esteja a fazer agora… E se alguém entrar aqui no meu escritório neste preciso momento e eu estiver ao telefone, uso o presente do indicativo? Não. Direi algo como: «O António chegou agora!» No pretérito perfeito! Misturado com a palavra «agora»! Ah, se eu fosse inventor de erros, tinha aqui muito material…

O rigor e o prazer da língua

Os erros falsos deste livro são uma desculpa para olharmos para a língua com mais atenção. No fundo, este livro tenta fazer algo que, confesso, é difícil: olhar para a nossa própria língua como se fosse a primeira vez.

Tento levar o leitor a entrar na toca do coelho: quando começamos a olhar para a língua de certa maneira, encontramos um território por explorar que vai muito para lá dos erros… O mecanismo linguístico que temos no cérebro é um espanto. Este livro é uma pequena janela para esse espanto.

Mas o Dicionário também é um livro de combate: combato o literalismo nas análises linguísticas; combato o empobrecimento da língua; e defendo uma atitude saudável perante a variação linguística.

É também um combate pelo rigor: neste caso, pelo rigor do pensamento sobre a língua. Devemos recusar simplismos e ideias falsas. Não nos enganemos: a visão da língua que apresento no livro é uma visão exigente. Mas também, espero, uma visão que abre as portas ao prazer do bom conhecimento sobre a língua.

As palavras têm uma vida secreta, para lá das aparências. Portam-se mal! E ainda bem: são bichos bem mais interessantes do que seriam se cumprissem as ordens de quem as quer bem-comportadas, cada uma no seu sítio, sem redundâncias, sem repetições, sem o sal que dá gosto à língua.

Este dicionário é, portanto, uma homenagem ao português — e uma homenagem aos falantes da língua, com as suas vidas complicadas, onde mesmo assim vamos encontrando espaço para o riso e para o prazer. Se cada leitor se rir um pouco ao longo da leitura — e sentir um poucochinho de prazer — fico feliz. Foi para isso mesmo que escrevi este livro.

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