Porto vs Lisboa: nunca se disse tanto bem, tanto mal.

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Há duelos que põem em polvorosa uma cidade. A superioridade deste duelo reside no facto de ter posto duas cidades a levitar. Há dez anos, António da Costa Santos, por Lisboa, e António Eça de Queiroz, pelo Porto, esgrimiram tudo: palavras, argumentos, versos, imagens, amores e ódios, algum vernáculo. 

Cada um defendia a sua dama, as cidades de Lisboa e do Porto. O livro esgotou-se e, dez anos depois, reeditámo-lo, fazendo os duelistas voltar ao local do tiro e queda. Para ver se repetiam o que tinham dito. Repetiram, corrigiram e acrescentaram: estão, diz-vos este editor, com a pontaria cada vez mais afinada. 

Lembra,se de Scolari ter um dia dito “mata-mata”? Este é o livro do “nunca-nunca”. Nunca se disse tão bem de Lisboa e do Porto. Nunca se disse tão mal do Porto e de Lisboa. Não podemos oferecer-vos, caros leitores, o livro, mas vamos oferecer-vos a suculenta entrada. Comecemos pelo texto de apresentação de António Costa Santos. Disse ele há 10 anos:

EU NÃO SOU BAIRRISTA, António da Costa Santos

Hesitei muito ao aceitar o convite do meu editor para defender as maravilhas de Lisboa e deitar abaixo as que o Porto julga ter. Ponderei durante cinco longos segundos e estive à beira de recusar. Sinceramente. Por um lado, porque os lisboetas não têm a mínima prática de dizer mal do Porto, o que torna o combate desigual e este projecto um desequilíbrio pegado. Mas a gente alfacinha é valorosa, sempre deu provas disso ao longo da História, razão pela qual a recusa, a verificar-se, não seria por isso. O problema é que sempre olhei de esguelha para o bairrismo.
A olho nu, não passa de uma espécie de patriotismo de trazer por casa, que o meu bom gosto, característico de Lisboa e, não desfazendo, episódico na Invicta (eles nem gostam de coentros, imagine-se!), me levaria a rejeitar. Só que, no fundo, no fundo, acho-lhes um piadão, aos bairristas. A sério. Palavra. Não tenho nada contra bairristas. Sou, aliás, amigo de vários deles e só não escarrapacho aqui os seus nomes, porque, apesar de insuportáveis, não lhes quero mal e poderiam ter problemas lá na rua, se, na Foz, ou no Bolhão, fosse sabido que eram amigos de um mouro.
Pois é. Noventa e nove por cento dos bairristas com quem me dou são do Porto. O restante um por cento vive em Gaia. Não está provado que a maleita seja congénita, mas lá que é endémica, disso não subsistem dúvidas. Eu sou de Lisboa e o bairrismo, na mais brilhante cidade do País, é um fenómeno residual, postiço, artificial, uma coisa que se pratica como quem diz: «Pronto, vamos lá fazer como os gajos do Porto.» Já morei na bela Graça e trocávamos bocas com o lindo S. Vicente e a única Alfama. Já morei em São José e a malta da Mouraria dizia-me: «Não tens bairro, não tens nada», ao que eu respondia: «’Tás-m’a chamar tripeiro, ó morcão?» E ríamo-nos imenso. Mas não conheço nenhum lisboeta, por exemplo, da maravilhosa Madragoa, que inveje a boa vida dos naturais da fantástica
Alcântara. 
O bairrismo em Lisboa não vai longe. Tem um pico, ou melhor, um piquinho, na noite das marchas do meu rico Santo António (para os amigos do Porto: trata-se de uma espécie de S. João, mas em bom, sem alhos-porros, marteladas e essas violências gratuitas), e depois a gente esquece-se. A questão é essa: a gente esquece-se, ao contrário do que se passa no Porto. Diria até que, se Lisboa, por absurdo, pudesse invejar alguma coisa ao Porto era isso: eles são bairristas a full time, a vida toda e mais seis meses. Ora isso até pode ser positivo para a saúde mental dos indivíduos: o ser humano precisa de causas, a vida tem de ter um sentido. Portanto, vamos a isto, carago! Aceitei.
LISBOA, OUTUBRO DE 2008

E agora, dez anos, depois, vejam o que acrescenta o António de Lisboa:


A CULPA É DOS MOUROS
Dez anos depois, o bairrismo que caracterizava no início do século os meus compatriotas da Invicta (recuso-me a cumprir o AO e a escrever Imbita) quase desapareceu. Na última década, o FCP permitiu ao Benfica ganhar quatro campeonatos de rajada; há quase dois meses que não oiço um político nortenho a indignar-se pela escolha de Lisboa por parte de um colosso mundial da informática para instalar escritórios; o Infarmed, à hora de encerrar esta edição, ainda está em Lisboa e não vejo cordões humanos a ligar os Aliados ao Terreiro do Paço, protestando contra a demora, fruto de uma manobra sulista, centralista e ordinária.
Temo, por isso, que este livro surja em 2018 como um objecto anacrónico – que sentido faz estar a pôr em competição as virtudes de duas cidades, quando tripeiros e alfacinhas há séculos que não mandam bocas uns aos outros? – e só espero que o leitor desta edição dos anos 10 do século xxi a encare como memória histórica de um tempo curioso que já passou. Caso contrário, a obra, por desinteresse, não se vende e o António Eça de Queiroz vai
dizer que a culpa é aqui do mouro porque fez esta introdução a desmobilizar leitores. Não é que eu não esteja habituado. Quando as coisas correm mal, para o Porto, a culpa é sempre dos mouros.

Trazendo como séquito uma cidade inteira, a Ribeira e a Foz, António Eça de Queiroz apresentou-se desta forma para a batalha:

EU GOSTO DO GENUÍNO, António Eça de Queiroz
A proposta que a editora Guerra e Paz me fez algures em 2007 não exigiu de mim grandes reflexões. Imediatamente
quis saber das guias e parâmetros que deveriam coordenar a harmonia possível entre teorias e ideias que fatalmente
se iriam combater. E, claro, logo quis saber quem iria defender a honra discutível da velha e esbotenada dama. Pois parece que a coisa se complicou!…
O que até se compreende – já que o lifting possível que ali se pretenda fazer nunca conseguirá desensarilhar de forma capaz a trapalhada monumental em que Lisboa se foi tornando ao longo dos séculos, na sua ânsia pacóvia por um cosmopolitismo que se apresenta decalcado de folhetos de viagem ou de memórias de terceiros, por grandezas alheias ou pelo brilho patético do ouro dos tolos – que na capital assume a forma amalgamada duma ambígua proximidade do poder com peças «de marca» compradas na contrafacção em Carcavelos.
A ASAE bem que podia actuar neste caso real… Para mim, a questão sempre foi simples: ou há genuinidade,
ou não há. Não se trata de bairrismo ou sequer de regionalismo; conheço bem Lisboa, já lá vivi por épocas (sempre breves), e certamente que lhe reconheço alguns encantos – embora deteste a ideia de lá viver, nada de confusões. 
A coisa só se torna mais aborrecida quando focamos as pessoas.Porque quase ninguém é realmente de Lisboa. Os seus habitantes mais frequentes vieram um dia do Fundão, da Guarda, de Castelo Branco, de Pardilhó, da Gaforeira, de S. Gualter da Vacariça, das Lajes do Pico, de Maria Vinagre, de Peroliva, de Moimenta das Bordas (não sei se o nome é exactamente este…) e, veja-se lá, até do Porto!…
Há, é sabido, uma grande predominância das Beiras, que nos tem fornecido políticos às grosas – e alguns deles medonhos, como é do conhecimento geral. E aquele jet set revisteiro – sem jet nem set –, e aquelas «tias»
infernosas que invariavelmente encerram uma conversa telefónica com um irritante «então vá…!», numa evocação quase subliminar da sua suposta posição de mando, eventualmente reclamada por via uterina… Ou aqueles gajos muito arrebicados, muito maridos de «tias», muito cheios de gravatas cor de arara com icterícia, muito espartilhados em blazers cheios de botões dourados, com o peito enfunado a dar lugar à barriga… Enfim, uma completa
palhaçada protagonizada por uma multidão de betinhos e respectivas, que se lambuza com couratos e caracóis, e que depois vai até à Luz treinar a inevitável úlcera.
Ora, como a questão para mim passa exclusivamente pela contabilização do genuíno, a tarefa de dizer bem do Porto e mal de Lisboa torna-se-me tão fácil como respirar. Como poderia eu dizer não?!… E logo no meu caso, que até
sou mercenário!…
E assim lá fui esperando pacientemente que aparecesse uma réplica moderna dum dos Doze de Inglaterra, capaz de arriscar o pescoço na defesa do (para mim) improvável esplendor desse sítio habitualmente tão mal frequentado.
Já em 2008 lá surgiu finalmente a vítima – perdão!, um corajoso jovem (ainda), cheio de nevoeiros sebastianistas na cabeça e algum sangue na guelra.
Mas pelas primeiras impressões cheira-me a equívoco. Porque o homem em vez de me dar com a habitual luva nas trombas, acenou-me lá de baixo com um ramalhete de coentros… De coentros, veja-se bem!
Com mil diabos, homem: acorde! Compre uma escopeta! E um corno de pólvora! Atire-me com um macaco hidráulico! Faça algum barulho, porque já está a perder adeptos e isto ainda mal começou! E faça-me um favor: só fale de coentros quando aprender a cozinhar.
PORTO, OUTUBRO DE 2008

Mas passaram dez anos e o António do Porto não só apurou o tiro, como ainda teve tempo para a divagação de um post-scriptum.

AS ESTAÇÕES MUDAM
Para começar, uma sentença muito minha: as estações mudam, o tempo, esse grande destabilizador, lá vai passando
connosco a reboque (e por vezes aos tropeções), e eu vou tornando-me cada vez mais insensível a efemérides. As excepções, que as há sempre, são aquelas dotadas de um certo determinismo exótico capaz de instilar vibrações positivas nas minhas sinapses mais malabaristas e/ou interesseiras. Declaração feita, bem pobrezinha ficaria ela se não enumerasse algumas das tais efemérides que ainda me sensibilizam, a saber, e por ordem de importância: os aniversários dos meus dois filhos, que me dão uma bela perspectiva do penhasco da existência; o solstício do Inverno, pois o dia mais curto do ano projecta também noites que se vão encurtando; o dia, nem sempre exacto, em que a Administração se lembra que o subsídio de férias me deve ser depositado na conta… E agora, como um repentino eco longínquo, a memória absolutamente amável e portentosamente divertida do que foram esses dias de há já uma década em que eu e o António Costa Santos, a instâncias provocatórias da Guerra e Paz, desatámos a trocar picardias hiperbólicas, ditirambos quase melados e várias outras patifarias ou elegias a respeito das duas
cidades que aquecem e continuarão a aquecer os nossos respectivos e sensíveis corações.
Será que muito mudou desde tão épicos dias? Bem, se o mundo foi mudando, e por vezes tão drasticamente, como poderiam não ter mudado também os nossos ambientes e vidas… Pela parte que me toca – ou seja, a Mui Nobre e Invicta Cidade do Porto –, devo reconhecer que o retrato mudou em certos pormenores, uns para melhor, outros nem tanto. Mas não serão diferenças avassaladoras, posso garantir (e assinalo em su sitio para disso mesmo fazer melhor prova). E não, não falarei das bolhas imobiliárias (não serão antes furúnculos?), que isso é matéria exclusiva de empreiteiros, formigas, autarcas e banqueiros – ou pretendentes a tal.
Destaco aqui um aspecto que considero culturalmente importante, embora se trate de algo que já se verificava há dez anos – mas que hoje adquire uma visibilidade verdadeiramente notável: a escolha do Porto como destino temporário para uma cada vez maior e mais variada classe estudantil, que se espanta por ter wi-fi grátis em
praticamente todos os transportes urbanos, e que, de várias formas, se mostra confortável e bem recebida na nossa cidade. Esse é talvez o maior elogio que o Porto poderia receber: não só os turistas que nos visitam por uns dias em números cada vez mais sólidos, os elogios de grandes jornais e televisões que cá vêm tentar verificar se o encanto é real – e que depois dizem que sim, que é –, mas, acima de tudo, a sensação de que jovens de todo o mundo, empenhados em conhecer e aprender (e divertir-se, naturalmente), o fazem com grande à-vontade e visível agrado.
Sobre Lisboa…, enfim, continuo a amá-la, certamente, mas à distância. Assim como por vezes pode acontecer na relação já difusa com uma antiga e outrora fogosa namorada: estimo imenso que esteja bem – mas o facto incontestável é que não casei com ela.
PORTO, MAIO DE 2018

(P.S. – Quando digo que «estimo imenso que esteja bem», não mudo em nada o que disse há dez anos, altura em que já estimava imenso o mesmo – mas isso não quer dizer que concorde com as péssimas companhias do costume, a saber: a corte insuportável (e seus familiares) que sobrevive nas bordas do «Terreiro do Poço», qual poeira estelar
na vertigem do buraco negro, e a paralogia galopante que ciclicamente toma de assalto os benfiquistas, fazendo-os crer que ganhar um tetra na vida é penta garantido… Santa e ingénua ilusão!… 
Por essa ordem de ideias, até o Sporting já tinha um – e o FCP dois, naturalmente.)

 

É muito simples, diz-vos o editor: não há mais nenhum livro assim. São dezoito assaltos, a socos de luva, a golpes de espada, florete e, aqui e ali, um insidioso punhal. Vive-se e morre-se, com garbo de alfacinha, com garra de tripeiro. Já leram?

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