O jornalista Roby Amorim tinha uma escrita fluída, clara e, como diz, António Lobo Antunes, “enxuta”. Neste livro póstumo, seguindo com minúcia a vida e a morte da sua avó, Roby Amorim leva-nos numa viagem exaltante pela nossa história, do século XIX até à Guerra Civil espanhola. É um romance. Ora experimentem ler os parágrafos de abertura desse livro extraordinário:
“A Avó morria lentamente no enorme leito, quase só o que lhe restava de passadas grandezas e requintes aristocráticos. A pneumonia vencia facilmente a Medicina. O corpo mirrado alongava-se em estertores para tentar respirar, encher os pulmões dilacerados, conquistar uma última réstia de ar. Duas freiras revezavam-se, tranquilamente, à espera do fim. São espanholas, de uma irmandade que começava a tentar implantar-se em Portugal.
Pobres camponesas, patéticas, de crenças vindicativas, seduzidas por um Cristo sangrento de justiça feita sobre os inimigos. Bonita, a irmã superiora. Irmã Madalena, de sua escolha religiosa, a renegar as outras madalenas de profissão mais próxima dos desejos humanos do que dos ânimos divinos. Inteligente, culta, indispensavelmente reaccionária, mas a defender bem e com todo aquele vigor andaluz os seus pontos de vista. Sob a goma dos panos rígidos que lhe cobriam a cabeça, como asas de anjo incipiente ou de ave que não ousava voar, adivinhavam-se aqueles cabelos loiros que não são raros numa península convencionalmente marcada pela presença árabe. É uma mulher morena, dizem as pessoas, esquecendo que ao trigueiro de uma pele crestada pelo duro sol peninsular se está a emprestar uma origem mourisca, norte-africana.
A Irmã Madalena argumentava – enquanto a Avó morria lentamente – sobre a épica resistência de Moscardó1 nas torres hercúleas do Alcázar de Toledo.
− Ali está a travar-se a verdadeira luta pela preservação da nossa tradição, da sobrevivência da cultura ocidental, argumentava, perdendo um pouco a tranquilidade exigida pelos votos religiosos.
− Fala de Toledo?! − reagia meu pai. − De Toledo lembro precisamente o contrário, aquele caldo de cultura medieval, tolerante e interessado no conhecimento, que congregou nas mesmas descobertas cristãos, muçulmanos e judeus. O que recordo é que foi ali,onde Greco viria a fazer as suas obras-primas, que Afonso X, o avozinho do nosso D. Dinis, criou a «Escuela de Tradutores», para que o saber fosse uno e universal. Talvez por isso lhe tenham chamado «O Sábio». Agora o que nos oferecem é a barbárie.
− O nosso rei Afonso XIII…
− Ex-rei − contrapunha meu pai.
− O nosso rei Afonso XIII − insistia ela, ignorando a interrupção − dizia que só se pode ser espanhol e pessoa honrada sendo-se católico.
− Pois que o digam as vítimas da Santa Inquisição! Além disso, o Borbón, como explica Blasco Ibañez…
− Ese blasfemo y, además, maricón…
− Os Borbón consideram, sempre consideraram, o povo espanhol assim como uma espécie de máquina a vapor, cujo trabalho convém, mas cujo ruído incomoda. Veja o ruído que agora fazem. E vocês a apoiarem o garrote medieval, a delirarem perante as massas de operários metralhados nas ruas.
Ao calor excessivo da salamandra, o debate valsava entre Ortega y Gasset, Unamuno, os fuzilamentos dos sacerdotes católicos pelos «rojos». Não sabíamos nada de Lorca ou dos irmãos Machado, mas falava-se abertamente de Badajoz: a praça de touros onde não se corriam os miúras, mas se fuzilavam «vermelhos», arrebanhados em fuga desesperada pelas estradas portuguesas e entregues aos previsíveis vencedores do conflito. Olhava-se com certa compaixão o novo secretário-geral do governo civil4. Era um homem alto, correctamente vestido, mas com um olhar ausente. Dizia-se que ocupara idêntico lugar em Elvas e que assim fora obrigado a levar à fronteira umas tantas camionetas de fugitivos. A Guardia Civil agradeceu-lhe, fê-lo assinar uns papéis e deixou escapar os prisioneiros.”
Espero que vos apeteça ler tudo. O editor agradece-vos e, no fim, estaremos todos gratos a Roby Amorim.