Da introdução
de Manuel S. Fonseca
Minha Mulher, a Solidão nem sequer é um livro. São dois. Se o dono da editora Olisipo que Fernando Pessoa foi viesse pedir explicações, dir-lhe-ia que são dois livros em conflito. Com textos e poemas completos – quando são fragmentários é porque assim os deixou o seu autor – há um livro dominante que espelha o diálogo maior que o autor manteve com o, umas vezes exaltado, outras esmaecido, desejo pelo corpo feminino e com a trama que entretece a relação amorosa de um homem e de uma mulher. O outro livro, selvagem, em papel de jornal, rasga o livro canónico com seis cadernos panfletários, isolando e sublinhando excertos. Neste livro guerrilheiro, soltam-se velas à pederastia, a umas masoquistas espáduas em cruz, solta-se a loucura sádica de se ser a cadela de todos os cães e isso não lhe bastar… Solta-se, enfim, a polimorfia amorosa que Fernando Pessoa poética e intelectualmente cultivou, e da qual, que se saiba, não há na sua vida vivida nenhum traço líquido, a mais pequena e suja mancha humana.
Que objecto bizarro é este livro? Se o falido dono da tipografia Ibis, que Fernando Pessoa também foi, quisesse saber, dir-lhe-ia que, não por acaso e como no colophon se explica, este é um livro com muito trabalho tipográfico manual, tal qual, sugerem os biógrafos, foi manual o que de concreto sexo a sexualidade mental de Fernando Pessoa experimentou.
Dizem-me uns sisudos «donos disto tudo» das artes & letras que com estas coisas não se brinca. Lamento, mas ao contrário do que dizem, brinca-se sim e é mesmo com coisas destas que vale a pena brincar. Brincar com a obra de Fernando Pessoa é vivê-la: sentarmo-nos, corrermos ou deitarmo-nos nela – é para isso que verdadeiramente serve a Ode Marítima ou A Tabacaria e é isso o que faz o Menino Jesus, atirando pedras aos burros e roubando fruta nos pomares, quando se junta ao guardador de rebanhos de Alberto Caeiro. Estudar-lhe a obra com esforço académico, classificá-la, investigá-la arqueologicamente são trabalhos monásticos necessários e essenciais e a quem o faz devemos, e sem reserva, ficar muito agradecidos – desmesurada, mas não reverencialmente agradecidos. A obra, depois, tem de estar na boca dos leitores, como, por escrito, Fernando Pessoa tanto pediu que na sua boca estivesse a boquinha de Ofélia. Vamos, então, aos beijos.
Conselhos às malcasadas
BERNARDO SOARES
Proponho-me ensinar-lhes como trair o seu marido em imaginação.
Acreditem-me: só as criaturas ordinárias traem o marido realmente. O pudor é uma condição sine qua non de prazer sexual. O entregar-se a mais de um homem mata o pudor.
Concedo que a inferioridade feminina precisa de macho. Acho que ao menos se deve limitar a um macho só, fazendo dele, se disso precisar, centro de um círculo de raio crescente de machos imaginados.
A melhor ocasião para fazer isso é nos dias que antecedem os da menstruação.
Assim:
Imaginam o seu marido mais branco de corpo. Se imaginam bem, senti-lo-ão mais branco sobre si.
Retenham todo o gesto de sensualidade excessiva. Beijem o marido que lhes estiver em cima do corpo e mudem com a imaginação o homem num olhar belo que lhes estiver em cima da alma.
A essência do prazer é o desdobramento. Abram a porta da janela ao Felino em vós.
Como tracasser o marido.
Importa que o marido às vezes se zangue.
O essencial é começar a sentir a atracção pelas coisas que repugnam não perdendo a disciplina exterior.
A maior indisciplina interior junta à máxima disciplina exterior compõe perfeita sensualidade. Cada gesto que realiza um sonho ou um desejo, irrealiza-o realmente.
A substituição não é tão difícil como julgam. Chamo substituição à prática que consiste em imaginar o gozo com um homem A quando se está copulando com um homem B.
Minhas queridas discípulas, desejo-lhes, com um fiel cumprimento dos meus conselhos, inúmeras e desdobradas volúpias (…) com o animal macho a que a Igreja ou o Estado as tiver atado pelo ventre ou pelo apelido.
É fincando os pés no solo que a ave desprende o voo. Que esta imagem, minhas filhas, vos seja a perpétua lembrança do único mandamento espiritual.
Ser uma cocotte, cheia de todos os modos de vícios, sem trair o marido, nem sequer com um olhar — a volúpia disto, se souberdes consegui-lo.
Se cocotte para dentro, trair o marido para dentro está-lo traindo nos abraços que lhe dais, não ser para ele o sentido do beijo que lhe dais — ó mulheres superiores, ó minhas misteriosas Cerebrais — a volúpia é isso.
Porque não aconselho eu isto aos homens também? Porque o Homem é outra espécie de ente. Se é inferior, recomendo-lhe que use de quantas mulheres puder: faça isso e sirva-se do meu desprezo quando (…). E o Homem superior não tem necessidade de nenhuma mulher. Não precisa de posse sexual para a sua volúpia. Mas a mulher, mesmo superior, não sente [?] isto: a mulher é essencialmente sexual.
Que de Infernos e Purgatórios e Paraísos tenho em mim — e quem