São as três perguntas sacramentais, que sempre fazemos a cada autor. Por maioria de razão, e perante um livro tão intenso, não podíamos dei xar de as fazer a Carlos Taveira, autor de “São Paulo, Prisão de Luanda”. Eis o que ele nos quis dizer sobre o seu livro e sobre a experiência extrema que foi a vida no cárcere.
Carlos Taveira, a génese deste livro é, obviamente, muito especial. Conte-nos como nasceu São Paulo, Prisão de Luanda.
Da solidão. Encontrava-me sozinho, divorciado, no fim do século passado, em Otava, capital canadiana, para onde tinha mudado recentemente por razões de trabalho. Durante umas férias em Portugal, ofereceram-me a «Estação das Chuvas» do Agualusa. Constatei então, surpreendido, que vivera a realidade de muito do que ali se contava de forma romanceada. Na altura eram poucas, ou nenhumas, as denúncias feitas por quem passara nos centros de detenção dos dissidentes do MPLA. Essa leitura encorajou-me a libertar as minhas recordações da gaveta onde as tinha aprisionado. Anotei-as desordenadamente, com o objectivo de as enviar a alguém que, eventualmente, se entregasse ao trabalho de colectar testemunhos dessa época. Uma amiga minha, ao ler o manuscrito, achou que devia tentar publicá-lo. Desisti à primeira recusa, acho que foi pretexto para não voltar a remexer nas lembranças escuras da juventude. Dediquei-me a escrever romances com fundo histórico, onde era eu quem controlava sofrimentos e épocas e «São Paulo Prisão de Luanda» ficou congelado no disco rígido. Para responder de outra maneira à pergunta: ele nasceu numa prisão e ficou enjeitado durante todos estes anos. Só agora lhe reconheço, oficialmente, a paternidade.
O seu livro trata de factos e situação limite. Mas é, surpreendentemente, também um livro com leveza e sentido de humor. Como foi possível conciliar esses contrários e que lição lhe trouxe esse período?
Quando entrei para a cadeia disse para comigo mesmo: já que aqui estás, tenta aprender alguma coisa. Observei e aprendi. Entre os enclausurados formam-se sociedades surpreendentes, mesmo a meio do que é óbvio neste género de edifícios, isto é os gritos dos supliciados, os assassinatos nocturnos, o ambiente de terror das noites em que o «autocarro do amor» aparecia para recolher quem ia morrer. Há um quotidiano a preencher, um tempo a queimar e o humor faz parte do dia-a-dia e dos instrumentos de combate à depressão. Li há muitos anos, num desses livros que descrevem as atrocidades cometidas pelos nazis nos campos de concentração, que os humanos, mesmo em circunstâncias extremas, são capazes de rir. O humor é uma arma, inconsciente talvez, de resistência. Quando ele toma consciência da sua força cria bandas desenhadas como as do Sérgio Piçarra, denunciando corrupção, nepotismo e outros males que enferrujam o poder. Numa prisão o humor é essencial mesmo quando macabro o que é, bastantes vezes, o caso. Ele faz parte integrante do sistema imunitário do preso, são anticorpos resistindo ao desânimo.
O que pode este seu livro oferecer, hoje, a um angolano, na Angola de João Lourenço?
Há sinais que o país entrou numa nova era, saudemos a coragem desse lobitanga que a anunciou. Não participo nela, vivo fora de Angola. Estabelecido como estou, confortavelmente, no Canadá, não me dou o direito de a comentar, muito menos de a criticar. Quem reconstrói o país é quem por lá ficou, trabalhou, o habitou e com ele riu e chorou. Continuo, no entanto, a reivindicar a cidadania daquele antigo espaço de sofrimento, talhado por gente do partido de JLo na carne viva dos dissidentes. Mais do que a guerra, foi o medo de para esse espaço voltar e a busca de um futuro decente que essa «mancha» me negou, que me levaram a buscar tranquilidade e vida melhor algures. Tal como todos os livros de memórias, o que este oferece é uma modesta contribuição para que o esquecimento não se instale. Não se trata aqui de vingança ou ajustes de contas nem de reclamar uma justiça que, aparentemente, não faz parte das prioridades do governo angolano. São memórias, apenas memórias. Como efeito secundário, espero que quem o leia (seja ele de uma esquerda extrema o de uma direita extremista) medite sobre a ineficácia do monolitismo político como instrumento de normalização do caos. Sabemos todos o quanto, nas democracias, a descrença nos dirigentes se instalou e como o eleitor se tornou permeável ao discurso totalitário. Já passei por essa tentação até que, jovem e ingénuo, me ofereceram um lugar privilegiado para assistir ao degradante espectáculo da crueldade humana. Era imaturo, «conhecia» a verdade e o caminho, assim estava convencido. São Paulo encarregou-se de me ensinar que as verdades ehttps://www.guerraepaz.pt/inicio/524-sao-paulo-prisao-de-luanda.htmlvoluem e que a verdade necessária só pode nascer do debate e da participação inclusiva.