Não nos levem a mal por gostarmos tanto dos livros de que gostamos. Às vezes fazem-se livros por serem úteis e por preencherem uma lacuna. Mas há os livros que se fazem por puro prazer. Não nos levem a mal por gostarmos tanto desses.
Este é um desses livros. Chama-se Absinto, Ópio, Tabaco e outros Fumos e leva este prometedor subtítulo, Um Livro de Vícios. Este livro reúne textos de Fernando Pessoa e dos seu heterónimos ligados todos pela ideia de vício. É o primeiro livro de uma nova colecção da Guerra e Paz, Os Livros de Fernando Pessoa. Nesta colecção, cada livro é uma antologia de prosas, poemas, manifestos ou mesmo textos mediúnicos de Pessoa ou dessa multidão de autores que vivia no corpo de Pessoa.
A colecção tem uma identidade visual muito própria. O Ilídio Vasco concebeu uma matriz para as capas. Não nos levem a mal, mas gostamos mesmo muito. Tanto que revelamos já as capas das duas próximas antologias.
Esta primeira antologia, este Absinto, Ópio, Tabaco e Outros Fumos é, já se disse, um livro de vícios. Os critérios e o objectivo desta antologia está patente, no texto de apresentação do organizador, que sou eu mesmo. Cito parte desse texto:
«Quem, neste livro, se encharca de absinto ou ópio? Um esquivo e magro Fernando Pessoa, a caminhar colado às paredes, pelas escuras altas horas da Lisboa dos anos 20, como o magro Frank Sinatra caminhou pelas wee small hours of the morning, na Las Vegas dos anos 50? Drogava-se sozinho, esse Pessoa que, à posteridade, a si mesmo se ofereceu como uma multidão? Terá sido o vanguardista e iconoclasta Álvaro de Campos a empurrá-lo para as flores do mal? Ou o desassossego, que vem sempre de onde menos se espera, caiu-lhe no tampo de uma mesa de tasca e bagaço, empurrado pela mão escriturária de Bernardo Soares?
[…] esta antologia, alvarinha e desassossegada, nasceu da vontade de ter Fernando Pessoa no meio de nós, na rua, no café, onde ele possa fumar e beber. Tê-lo connosco, agora, enquanto ainda, em ruas e cafés, se possa fumar e beber.Um verso, Dêem-me de beber, que não tenho sede!, encerra o paradoxo central dos textos aqui reunidos. Todos os textos falam de vícios, do que hoje chamamos drogas recreativas, da aguardente à morfina. E em todos, seja a voz de Pessoa, a de Campos, até a de Ricardo Reis, ou a de Bernardo Soares, a voz que fala exprime pessoal e intimamente o que cair no ópio como numa vala, beber ou fumar desencadeia nesse Fernando Pessoa que é cada uma dessas vozes.
Foi esse o critério de selecção dos textos deste livro. Podíamos ter incluído todos os textos em que Fernando & Companhia usam a palavra «cigarro» ou a palavra «morfina», em que cantam o «vinho» ou o «ópio». Escolhemos incluir apenas os textos em que o poeta se funde fisicamente com as suas drogas.
O advérbio «fisicamente», diga-se, não tem aqui qualquer valor clínico ou biográfico (ou pouco importa que tenha), antes designando a forma como o cigarro, o fumo, o vinho roçam e arranham a consciência de Pessoa, quando ele em sonhar-se a fumar ópio, em sonhar-se a receber morfina, se embriaga da ideia do ópio, se embriaga da ideia da morfina, como o poeta fará confessar a Bernardo Soares. Toda a biografia é banal; vertigens de desfiladeiros e a violência das mais altas escarpas são um arrojo e exclusivo êxtase do espírito.
Ópio tenho-o eu na alma é outro verso que baliza este livro dos vícios em que Pessoa poeticamente se locupletou e se atormentou. Ainda mais do que os vícios do corpo, os vícios da alma pedem secretismo. E o segredo leva-nos ao romance.
Terá sido em 1914 que Fernando Pessoa disse: «Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais.» O pecado, sempre que se lê Pessoa, será não nos entregarmos também ao divertimento intelectual de lhe atribuirmos e decifrarmos mistérios. Experimentos, por exemplo, a paráfrase:
Ah, sacana do Pessoa que promete beber e não bebe, que promete fumar e não fuma – tinha a gente uma partida para lhe fazer e é ele que no-la faz.
Façamos então dos vícios de corpo e alma de Fernando Pessoa (ou serão do Álvaro do Desassossego?) um romance, organizando-os com um critério que os textos desses vícios possam indiciar […]
Lidos seja onde for, no meio da rua, no café ou no quarto, lidos onde se fuma e bebe, estes são poemas e textos que, pela sua natureza, terão de ser lidos em sobressalto. Ópio e morfina compram-se nas farmácias. Este livro de Fernando Pessoa compra-se nas livrarias. O que une tudo isto, livro, ópio e Pessoa,morfina, inocência e decadência é serem, como ele mesmo disse, escadas para o sonho.”
Manuel S. Fonseca