Dia Mundial da Poesia

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Hoje é o Dia Mundial da Poesia. Não há mal em que assim seja, ainda que a poesia mereça povoar as nossas vidas bem mais do que um dia por ano. E não creio que seja isso – reduzi-la a um dia -, que os criadores deste dia tenham pretendido. A poesia é mais do que uma inutilidade decorativa e a poesia diz-nos mais sobre a realidade do que muitas descrições da realidade, para não dizer do que a maioria das descrições da realidade. Há na poesia um passo mais na inteligência das coisas e na inteligência das sensações que nem sempre a prosaica e pretensamente objectiva descrição da vida parece oferecer. Se me permitem dou a palavra a Jorge Luís Borges, poeta cego, exemplar no seu domínio encantatório e poético do idioma castelhano.

«Há quem suponha que a prosa está mais próxima da realidade do que a poesia. Entendo que é um erro. Há um conceito que se atribui ao contista Horácio Quiroga, em que ele diz que se um vento frio sopra do lado do rio, há que escrever simplesmente: um vento frio sopra do lado do rio. Quiroga, se disse mesmo isto, parece ter esquecido que essa construção é algo tão distante da realidade como o vento frio que sopra do lado do rio. Que percepção temos? Sentimos o ar que se move, chamamos-lhe vento; sentimos que esse vento vem de um certo rumo, do lado do rio. E com tudo isto formamos algo tão complexo como um poema de Gongora ou como uma frase de Joyce. Voltemos à frase “o vento que sopra do lado do rio”. Criámos um sujeito: vento; um verbo: que sopra; uma circunstância real: do lado do rio. Tudo isto está longe da realidade; a realidade é algo mais simples. Essa frase aparentemente prosaica, deliberadamente prosaica e comum escolhida por Quiroga é uma frase complicada, é uma estrutura.

Tomemos o famoso verso de Carducci “o silêncio verde dos campos”. Podemos pensar que se trata de um erro, que Carducci mudou o sitio do epíteto; devia ter escrito “o silêncio dos verdes campos”. Astuta ou retoricamente mudou-o e falou do verde silêncio dos campos.

Vejamos a percepção da realidade. Qual é a nossa percepção? Sentimos várias cosas ao mesmo tempo. (A palavra coisa é demasiado substantiva, talvez.) Sentimos o campo, a vasta presença do campo, sentimos a verdura e o silêncio. Já o facto de que haja uma palavra para silêncio é uma criação estética. Porque silêncio aplica-se a pessoas, uma pessoa está silenciosa ou o campo está silencioso. Aplicar “silêncio” à circunstância de que não haja ruído no campo, é uma operação estética, que sem dúvida foi audaz no seu tempo. Quando Carducci diz “o silêncio verde dos campos” está dizendo algo que está tão próximo e tão distante da realidade imediata como se dissesse “o silêncio dos verdes campos”.»

Cantemos, pois, esses dois passos estéticos que Borges aqui nos dá a ver – o de ter a humanidade criado a palavra «silêncio» e o de alguém associar essa palavra ao campo fazendo-a passar pela mediação de uma outra tão visível qualidade desse campo, a verdura. Na Guerra e Paz, essa audácia que Borges refere, está presente em dois poetas  e em dois livros magníficos. Em Eugénia de Vasconcellos e no seu O QUOTIDIANO A SECAR EM VERSO, e no poeta romeno Dinu Flamand e no seu SOMBRAS E FALÉSIAS. 

Não encontro melhor maneira de celebrar a audácia desse milagre estético que não seja o de os ouvir também.

Eugénia de Vasconcellos, aqui:

DE MIM É O TEU CORPO

Terra sagrada de mim
é o teu corpo
e o meu nosso amor
que trouxemos
para celebrar
à sombra das aves.
Derrama-se o sol
sobre as nossas
varandas mãos estendidas
de agarrar o tempo
e todo o ar do céu
fugido do peito
que o quer respirar.
Dos frutos
que me dás a provar,
o sabor dos dedos,
O mais é nada.

Dinu Flamand, aqui: 

és o único que ainda sabe
da tua existência
em desacordo com qualquer realidade

impulso das ocultas chamas que dormem nas pedras
sombra com cheiro a explosão

e no sol imenso da tarde a noite torna-se neste dia de
esquecimento
e de absorção por entre os eflúvios de compaixão cósmica
acariciando com ondulações de salgueiros à beira dum rio que o seu pescoço
de galgo
deita aos teus pés

                              enquanto a cantilena dos tachos rotos da escuridão

cheia de vapores anuncia os preparativos do jantar à volta do lume sobre
o qual os rostos das brandas mulheres da casa parecem iluminados pelo
reflexo duma eterna felicidade que
se ignora

São poemas para sentirmos com o corpo todo. É o que penso depois de voltar a ler o que tão bem explica o argentino Jorge Luís Borges: «Tenho para mim que a beleza é uma sensação física, algo que sentimos com todo o corpo. Não é o resultado de um juízo, não chegamos a ela por meio de regras; sentimos a beleza ou não a sentimos.»

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