Os Meus Livros de Natal

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Sim, eu era então um adolescente em ponto de rebuçado, de Consoadas alimentadas a filhoses, rabanadas e um pão-de-ló etéreo que só as mãos da minha mãe Alice para o irem tirar à boca de Deus. Vejam, vejam: era a cidade de Luanda em toda a sua plenitude trópico-colonial. Se o Menino Jesus descia meio nu à terra aqui em Portugal, imaginem como ele aterrava na cálida noite angolana.

E vou ao que interessa. A noite era longa, Cruzeiro do Sul e uma Lua de 1968, que pé de homem ainda não pisara: um Natal em calor de fogo e um sossego lânguido e de calções convidavam os meus 15 anos à leitura. Nessa noite de Natal de 1968, comecei a ler e só me deitei quando terminei o Tortilla Flat, de John Steinbeck, a que o tradutor português chamou Milagre de São Francisco. Boémia e deliquescente deboche, fiquei fã dessa one night stand: a leitura de uma noite.

É para esse vício, para essa perversão nocturna a que devo a minha precoce miopia e tantas silenciosas asfixias eróticas, que vos quero convidar: neste Natal entreguem-se sem reservas à clandestina e vadia leitura de uma noite. Estes são os meus livros: tomem e leiam todos.

Não é que Camilo não mereça uma inteira noite de amor, ali que até os olhinhos se lambem, mas Maria! Não Me Mates, Que Sou Tua Mãe! lê-se em metade de uma noite. Leiam, leiam, está lá – ai, Maria José – uma mãe em sangue e a cabeça de Camilo. E na outra metade, agarrem-se, noite dentro, ao «beija-me com os beijos da tua boca» com que se abre o meu Cântico dos Cânticos, que Eugénia de Vasconcellos traduziu, e que um texto da ousada Agustina, «um tijolo na cama», prefacia, culminando com esta desvairada exaltação: «És como um jovem pavão armado de pernas azuis, e eu amo-te, que Deus me perdoe.»

Livro de uma só noite, agonista como mais nenhum outro de James Joyce, Os Mortos pede recidiva: one night stand no Natal, mas com a perspectiva de um aflito e desesperado regresso, na Noite de Reis, às lágrimas de generosidade dos olhos desse Gabriel que se confessa: «Nunca tinha sentido nada assim em relação a mulher alguma…»

Deixem agora descer a bondade à Terra. Expurguem a maldade, a avareza, a misantropia, como se um retumbante Adeste Fidelis ecoasse na catedral do vosso coração, e leiam, de Charles Dickens, Um Cântico de Natal. A santa noite toda: soletrem com os mais vagarosos requintes as letrinhas do corpo desta missa cantada, uma das mais belas novelas de sempre: é curta, mas dura… dura para sempre.

Formas, se querem mesmo falar de formas, abracem-se às 100 páginas de Amor, o prodigioso ensaio de Jorge de Sena, delicada peça de joalharia sobre o «puro» e o «impuro», o «pecaminoso» e o «santificado», o «sim» e o «não», a «maligna distorção» da beleza e onde, nas mais diversas ordens e desordens, surgem as palavras «prazer», «sexo», «epifania», «paixão» e «posse». Que noite, santo Deus!

Mas se o vosso amor é panteísta aninhem-se na caminha que Pero Vaz armou ao escrever ao nosso rei D. Manuel: Carta do Achamento do Brasil é mais do que um Natal, são dois povos em castíssimos beijos na boca, os corpos enlaçados na dança de seres espantados e arrebatados com a humanidade comum. Ménage à trois, porque a esta noite de um só livro se junta Onésimo Teotónio de Almeida com o seu belíssimo e percuciente prefácio A Carta do Deslumbramento com o Brasil. Que bem desliza, Onésimo.

Duas línguas, francês e português, entrelaçam-se na tradução que o João Moita fez da Saison essa Temporada no Inferno das incendiadas noites de Jean-Arthur Rimbaud, então em plena «puberdade miraculosa». E eu acabo já, se aceitam acabar na minha companhia, no Bordel das Musas, a que Claude Le Petit, morto pelas autoridades francesas na fogueira, em Paris, deu o subtítulo «ou as nove donzelas putas»: traduziu-o a Eugénia de Vasconcellos, desenhou-o João Cutileiro, numa das mais eróticas e espirituais (peço desculpa pela redundância) edições da Guerra e Paz.

Estes são os livros de uma noite. Para serem lidos numa inesquecível noite de Natal, com arrebatamento libertino, fundindo-nos com a eternidade. Que festa! Que felicidade!

 

 

Manuel S. Fonseca, editor

 

 

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